terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quase uma canção

“Desde o começo do mundo
Que o homem sonha com a paz
Ela está dentro dele mesmo
Ele tem a paz e não sabe (...)”*

O domingo nascia junto ao sol e lá estava ela sentada na escada frontal da Igreja de Santana com sua roupa branca toda amarrotada e suja, a maquiagem borrava-lhe todo o pálido rosto, dando-lhe um ar surrealista, poderia passar facilmente por um ensaio fotográfico moderno, mas não era.

Os “vampiros” saindo dos bueiros do Rio Vermelho atolados de tudo passavam e dirigiam-se à ela de forma jocosa, desrespeitosa, indelicada, estavam acelerados demais em suas realidades provinciano-universais, para perceber que existe algo além das fronteiras demarcadas do prazer.

A ela nada afetava, desde as tentativas mais engraçadinhas até as mais bebadamente grosseiras, não lhe atingiam, ela simplesmente não absolvia, não ouvia, não é que estivesse ignorando, não! Simplesmente não existiam aquelas pessoas, aquelas palavras.

Olhava fixamente com os olhos encharcados para o amanhecer que refletia um alaranjado quase ouro à enseada de onde saem as flores para o mar no dia dois de fevereiro. Parecia que, em algum plano, conseguia dialogar com algo que estava ali, mas só ela percebia, só ela via, tudo estava entre a Casa do Peso e a Pedra dos Pássaros. O ar soprava fresco espalhando, ao transpassá-la, um aroma de Acássia que deveria acalmar o ambiente, se os humanos ao redor se permitissem.

Homens, ainda quase bêbados da noite anterior, desciam as escadas com suas cordas, linhas de pesca, varas, tarrafas, panos... Peito nus iniciavam um dia de sal, de salitre de balançar pelas águas em busca do peixe que, sabe como, apesar de toda barbaridade cometida, ainda se mostravam, se não abundantes, pelo menos o suficiente para manter aquela comunidade em sua atividade artesanal.

Acostumados a ver o invisível sobre seus saveiros, e inebriados pelo alto volume de álcool, que se perpetuava em suas veias, passavam por aquele olhar borrado e ornado pelo despenteado e farto cabelo, mas ali não viam nada demais, era apenas mais uma visão de um calhau se espatifando na proa do saveiro. Alguns a olhavam com uma visão apaixonada, certamente lembrando-se de velhos sonhos passados e carcomidos pela força cortante do sal.

Poucos carros ainda trafegavam e alguns começavam a trazer as pessoas para o Templo de Santana, aonde outrora sinos chamavam os seus seguidores fieis. Hoje o badalar mecânico, soa distorcido, mas não abala à fé de quem as possui. Era efetivamente um típico amanhecer de um domingo, aonde uns lamentam o fim da noite de sábado, outros botam sua fé em atividade, seja na oração de agradecimentos, seja na força do saveiro cortando as águas escuras do mar.

A esta altura a moça de branco que sofria, havia descido a ascadaria que levava à praia, tirara a sandália prateada e molhava os finos e alvos pés nas águas geladas, onde Manteiga arremessava sua incansável tarrafa em busca das Pititingas, que iriam alimentar iscas para pesca e óleos quentes no decorrer do domingo.

Sem dizer uma palavra uma mão escura e enrugada a pegou pelo antebraço, e a conduziu de volta para a escadaria do Templo, pacientemente retirou-lhe a areia dos pés, calçou-lhe novamente as sandálias, ajeitou-lhe, dentro do possível, os cabelos, limpou-lhe o rosto dos excessos, sorriu-lhe como se lhe dissesse: pronto. Ergueu-a e entraram braços dados pela porta central do Templo, aonde todos em silêncio levantaram e as olharam.

Elas, firmes e benevolentes, olhavam fixamente para um ponto acima do altar, a jovem reverenciando o filho a velha, o neto.

Poucos perceberam, “eles estão surdos”*.

Roger Ribeiro
22 de novembro de 2011


* Todos Estão Surdos
Roberto Carlos

3 comentários:

  1. Pois é companheiro, esse texto me transmitiu paz e reflexão positiva.

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  2. Ela pára
    E fica ali parada
    Olha-se para nada
    Fica parecida
    (paraguaia)
    Pára-raios em dia de sol
    Para mim
    Prenda minha parabólica
    Princesinha parabólica
    O pecado mora ao lado
    E o paraíso... paira no ar

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  3. Gostei muito, suave, apaixonado e real. Te adoro, me sinto muito melhor agora.

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