quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Maria, a Bahia tem um jeito...



Criiiiiiiiiiiiiiiii.... Foi bem no meio da
Avenida Contorno, atravessado por uma Kombi bicolor que descia do Dois de Julho em direção à Conceição da Praia, e que simplesmente saiu; assim mesmo, como veio saiu, não olhou para um lado nem para o outro, aliás, nem para cima, pois se assim tivesse feito veria o próprio Jesus Cristo boca aberta, olhos arregalados e cabelos arrepiados com a barbaridade que fez.

O nosso coletivo vinha “na banguela” ladeira abaixo, o vento zunia pelas janelas, os rádios ligados misturavam “de um tudo”, era música evangélica, hip-hop, pagode, a coisa dentro do velho Campo Grande/Ribeira tava mais quente que festa de Largo na barraca do Juvená nos anos setenta. Como dizem por estas bandas, o dendê tava fervendo!

Foi aí que veio aquele “freio de arrumação” que você ouviu lá na primeira linha, eu vi tudo, não havia alternativa, ou estancava o “bumbão” ou ia voar caco de Kombi pra tudo que é lado. Pegaria pelo meio e, se não me falham os cálculos neste momento de emoção, iria sair a Kombi voando por sobre o Solar do Unhão e iria parar no meio da Baia de Todos os Santos, algo assim entre a Gameleira e o Farol de Humaitá. Seria uma tragédia,sem dúvida.

Mas foi daí que a Kombi, que nem notou nada seguiu seu curso e a nossa odisséia começou. Prá início de conversa a freada foi tão violenta que os dois pneus dianteiros do “buzú”, simplesmente
estouraram! O motorista só teve uma reação que foi escancarar o bocão e gritar a pleno pulmão:

- Fela de uma put...!

Clamor, aliás, o qual nós passageiros respondemos em uníssono:
- ôôôôÔô.
Pois nestas ocasiões, com o coletivo razoavelmente lotado, o primeiro culpado é sempre o motô (motorista para os não acostumados com o vocabulário local), daí até explicar que Chico não é
Francisco, corre um rio Amazonas por baixo da ponte.

Para piorar um pouco a situação, uma elegantíssima senhora que vinha em seu poderoso e importado automóvel no vácuo do nosso “bumbão”, não conseguiu parar e... Crashhhhhh-pracatabrum... entrou com tudo no fundo, slaflet abriram-se duas bolas de ar que não permitia ver nada dentro do poderoso automóvel, lentamente a porta se abriu e ela desceu com seu vestido longo prateado, seu cabelo cheio de laquê e sobre o salto de lá mesmo começou, delicadamente, a berrar:

- Seu Viad... FdP, ta com o olho no c...

Menino era um festival de impropérios que até eu, que não sou disso, fiquei rubro. Quem diria que uma senhora tão fina heim?!

Neste contexto externo, pegando fogo, o nosso querido e injustiçado motorista, levantou-se do seu acento e muito gentilmente dirigiu-se ao interior do coletivo:

- Tem alguém machucado “aê”?

- Aííí “motô”, tô toda quebrada... rodei pela borboleta (nome local para torniquete) umas quinze vezes, afff... tô completamente tonta e toda roxinha! Olhe só estou te vendo a cara do Lázaro
Ramos! Aliás dá um beijinho aqui no meu joelhinho que ta dodói...

Todos nós nos viramos para ver quem falava: xiiii, a coisa tava feia pro nosso querido condutor, o ser falante era algo um tanto quanto indefinido, mas como este é meu trecho de vida cotidiano, e sempre fui muito observador, lembrei-me no ato daquela fisionomia, aliás, era um tanto quanto difícil de esquecer, se algum dia já tivesse posto o olho naquele genuíno ser de uma Salvador contemporânea. Se não vejamos:

Cabelos longos descoloridos, com mechas em tons de roxo, vermelho e verde; olhos, um verde outro azul, denunciando as lentes de contato, ombros estreitos e peitoral delicado, da cintura em diante abria-se um “pandeirão” de fazer inveja as antigas “Mulatas do Sargentelli”, descendo para pernas fortes e torneadas, fechando com um “coturnão”, 46/bico largo.

Esta sua formatação lhe facilitava a vida, eu sabia disso, pois um dia já havia conversado com aquela criatura e ele havia me explicado como o Grande e Soberano Senhor lhe havia presenteado com aquela forma física, que aliado ao talento nato para produzir vozes as mais diversas, lhe permitia ser pela manhã ajudante de pedreiro, pela tarde vendedor de lingerie nas lojas do Tabuão, ao fim de tarde virar uma das mais charmosas Baiana de Acarajé da região da Conceição da Praia, pra onde aliás, estava se dirigindo, sem contar que aos fins de semana vendia coco verde pelas praias, onde aliás o conheci.

Não podemos negar, ali Deus foi benevolente e pródigo, assim nosso amigo conseguia viver, criar dois filhos da nova companheira e ainda pagar a pensão para as três crianças que havia tido com
Dona Maria dos Prazeres, a qual sempre se referia com toda a deferência, era a mãe de seus adorados filhos os quais não cansava de mostrar as fotos, que ocupavam mais de noventa por cento de sua carteira.

O semblante do nosso condutor ao ouvir o pedido do nosso companheiro de viagem foi realmente algo impar, e se alguém havia se batido, ou sentia alguma dor naquele momento, tudo se dissipou. A gargalhada foi geral, até a nossa madame que havia trombado de frente no fundo do coletivo não agüentou, colocou a mão na cintura, e batendo o pezinho, de salto e tudo, no chão metálico do ônibus, olhou para o “motô” e disse:

- Hummm, achou em heim!?

Mas o pior era a realidade pura que vivíamos naquele momento, fomos todos descendo do ônibus desolados, sem saber o que fazer, afinal, dois pneus furados, um carrão enfiado entre os pneus traseiros e no meio da Avenida Contorno, aonde o único vizinho é a Bahia de Todos os Santos. Começamos lentamente a caminhar em fila indiana para evitar maiores transtornos quando se ouviu o estrondo:

CABRUUUMMMMMMMMMMMMMMM!!!!
E o horizonte que já estava se arroxeando estourou em um clarão que a nos cegou por alguns instantes... Neste momento lá do fundo de nosso caminhar se ouviu o berro, de quem? Ora imagina... Só podia ser dele mesmo, com joelho doendo e tudo a criatura esganiçou a voz e berrou:

- Valei-me minha mãe, vamos todos para o Pelourinho reverenciar Yansã!

“Senhora das nuvens de chumbo
Senhora do mundo dentro de mim
Rainha
dos raios, rainha dos raios
Rainhas dos raios (...)”*

A vida vai passando e a gente não nota, mas era 4 de dezembro, acho que por isso as minhas bochechas estavam tão vermelhas.

Roger Ribeiro
01 de dezembro 2011.

*Iansã - Caetano Veloso

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