sexta-feira, 8 de maio de 2009

Eu sempre sonhei com você




Você já viu um sapato? Ou melhor, uma bota preta, velha, arranhada, com os cadarços assim, displicentemente folgados, andando por aí afora sem que haja um pé, uma perna, uma cintura, nada a controlar-lhe?

Pois era isso que ele dizia ter visto. Jurava! E se você fizesse a menor menção de duvidar... Ah! Ai meu camarada, como diziam os velhos soviéticos, o “bicho pegava” de vez. Virava uma fera, dedo em riste partia para cima ofendido, magoado. Irritava-se a ponto de necessitar de ajuda. Uma água com açúcar, um conhaque, um calmante qualquer. O melhor era não duvidar, afinal quem tem olho vê o que quer, não é mesmo?

Dizia que a bota, mas não de cano alto, uma bota tipo basqueteira, cano baixo, de couro preto, andava pela cidade fizesse chuva ou sol, não importava. Frequentava a todos os lugares sem preconceito algum. Odiava idéias pré- estabelecidas de que isso era bom, aquilo era ruim, não tinha essa conversa, tinha de ver em loco, senão jamais emitia juízo, parecer, nem arriscava nenhum tipo de comentário. Mantinha-se calado, atento. Dizia sempre que sapato bom fica de bico fechado.

Reportava-se a sua amiga bota como se conversar com uma bota que anda por aí sozinha fosse a coisa mais comum, abundante em qualquer parte, em qualquer local. Pedia-me que observasse como todas as pessoas, em determinado momento do dia, olham para baixo. Principalmente se estiverem sós. Todos acham que se está, naquele momento, descansando ou refletindo sobre algo muito importante como a pandemia de gripe Influenza H1N1, ou sobre a reunião que terá ao chegar ao trabalho, as dívidas acumuladas ou qualquer outra coisa digna de pessoas sérias e atarefadas. Mas, meu caro, dizia meu amigo: - não é nada disso! Na verdade se está naquele momento conversando com os próprios sapatos, ou com um quedes (tênis), sandália ou afins que estiverem por perto.

Diz que ninguém sabe mais do que esses seres, pois por estarem em contato direto com o solo, percebem nuances que o homem, com seu afã de subir, sempre subir, perdeu a percepção.

Encontrei um dia, esse meu barbudo amigo, sentado na sorveteria Cubana tomando um maltado de ameixa, resolvi sentar-me à sua mesa para olhar a baia de Todos os Santos e levar uma leve prosa de fim de tarde, afinal aquele seria um dia especial e eu queria estar alegremente concentrado.

Sabia que a única coisa que não podia fazer seria contrariá-lo, mas meu amigo com sua barba ruiva grisalha não era um maníaco radical. Não é que você não pudesse discordar do que ele dizia, não era assim. Aliás, pelo contrário, poderia passar horas em debates acalorados sobre política, futebol, mulheres, economia internacional, tudo enfim. Só não tolerava a negativa sobre a bota, curta, preta, velha que vagava sem fim pela cidade.

Pensei em puxar uma conversa histórica, aproveitaria o local em que estávamos e falaria sobre a falta que fazem os saveiros na Rampa do Mercado (local aonde se descarregavam os saveiros vindos do Recôncavo baiano, que fica ao lado do Mercado Modelo), porém não deu tempo, quando pensei em falar, ele se antecipou...

Disse-me:
- Já estou sabendo...! Veja lá o que você vai fazer heim?!
Como assim? Do que você está falando? Perguntei-lhe.
- Ela já me falou!
Ela quem? Falou o quê?
- Ora tudo! Não é por isso que você veio aqui?
Olhei para ele meio apreensivo. Será que meu amigo está em surto? Do que será que ele está falando? Após falar isso bem baixinho para mim mesmo, ou para os meus sapatos, procurei mudar o rumo da prosa e comentei: éh! Após tantos dias de chuva nada como esse solzinho de fim de tarde para esquentar, né?

Sem olhar para mim respondeu, puxando um pouco a barba:
- Ela saiu daqui agorinha mesmo, foi à farmácia se pesar. Disse-me que havia engordado por conta dos feriados e precisava saber quantos quilos precisava perder.

Meio ressabiado, sem querer encará-lo para que não pensasse ser uma provocação, perguntei: ela quem? A resposta veio rápida e seca.

- A bota, claro! Aliás, quando foi saindo me falou que você estava chegando, ouvira seus passos de longe e contou-me mais...

Mais? Perguntei angustiado. E o que ela contou?

- Disse-me que você estava tenso e que vinha em busca de espaço e ar fresco para retirar a tensão, pois à noite teria um compromisso que o deixava inseguro, tenso, como menino que passa a noite em claro imaginando como vai perguntar a ela se quer ser sua namorada!

Fiquei calado uns instantes, intrigado, confuso. Como será que ele sabia? Ou pior ainda como ela, a bota sabia do meu compromisso? E o pior, da minha tensão? Cheguei à conclusão que meu amigo estava jogando verde para colher maduro, resolvi despistar. Falei: Que compromisso que nada! E ainda por cima tenso! Eu?! Nunca, acho que desta vez a bota se enganou.

- A é?! Então tá. Agora depois que você tomar o vinho, comer a massa caseira e olhar aquele cabelo liso e preto combinando com o leve vestido sustentado pelos ombros magros, formando um conjunto harmônico e sofisticadamente simples, não vá dizer que seus sapatos te levaram ao topo do Nirvana à toa!

Olhei para a o meu amigo de barba ruiva e grisalha, sem bigodes, pois no dia que ia tomar maltado tirava o bigode, acho que por questão de higiene já que odiava canudinhos e não disse nada. Desviei o olhar para o chão e, incrédulo, percebi que usava uma bota preta, de cano curto, velha, sulcada pelo tempo e pelo andar na cidade.

À noite, após o vinho e a massa, pensei: como vou perguntar se a sandalinha dela quer passear com minha bota?

Roger Ribeiro.
7 de maio de 2009.

13 comentários:

  1. Genial !!!
    No inicio fiquei imaginando ... quem é esse cara que Roger nunca me apresentou, tão largadão e que tem essa bota tão surrada , a qual provavelmente eu acharia muito interessante, e seria fácil eu me apaixonar? ai depois, fui me aprofundando e me encantando mais com o texto, e entendi tudo, tudinho, dei até boas risadas.
    Um sapato velho tem tudo a ver com uma sandalia nova,e massa caseira tem a ver com um bom vinho ou com uma boa moqueca de camarão, com Barbosinha e também com um elegante Bristô Francês ...... afinal de contas, os opostos se atraem.
    Esperarei neste mesmo Blog ... as cenas dos próximos capítulos

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  2. Opostos não existem!

    Existem diferenças de personalidade e maneiras de viver. O que é diferente é excitante, podendo proporcionar um mundo novo que leve a um crescimento pessoal e prazeroso.

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  3. Como sempre ... GENIAL!!!

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  4. Depois deste texto nunca mais consegui encarar de forma natural qualquer bota, sapato ou sandalinha.

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  5. Grande Roger, querido. Gostei muito do seu texto. Não está, o objeto, no horizonte de minha ótica atual, a dos afetos de homem. Mas o texto só pode ser bem recebido por quem, de bom gosto, tenha a vida mais ampla que um horizonte quadrático. Abrassinté. Rildo

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  6. Grande Roger, querido. Gostei muito do seu texto. Não está, o objeto, no horizonte de minha ótica atual, a dos afetos de homem. Mas o texto só pode ser bem recebido por quem, de bom gosto, tenha a vida mais ampla que um horizonte quadrático. Abrassinté. Rildo

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  7. Grande Roger, querido. Gostei muito do seu texto. Não está, o objeto, no horizonte de minha ótica atual, a dos afetos de homem. Mas o texto só pode ser bem recebido por quem, de bom gosto, tenha a vida mais ampla que um horizonte quadrático. Abrassinté. Rildo

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  8. Rildo!!!! Onde andas homem de deus!?

    Vindo de tão nobre e próxima criatura, passo a acreditar que essa bota pode continuar andando por aí... até, quem sabe topar uma bela sandalinha colorida!
    Apareça na terrinha, ou se não for possível, no blog, ou no e-mal, ou no telefone... Enfim, apareça!
    Grande abraço.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Ave Rogerius Narratium Lira!

    Estou por alguns dias em Soteropolis, cidade que não salva, apesar dos esforços de Oxalá e mesmo de Nosso Senhor do Bonfim, o qual - assim seja! - não tem mais que tolerar alguma cortejante presencínica. A bem da verdade, algumas ainda tolerará, a certoutra não mais terá de. No "terá de" nem ponho reparo, deixo enterrado nessa linha sulcada, nesse rego, talvez doendo. Reparo, sim, neste tempo verbal: tolerará: palavra se alongando sem a graça de uma cachoeira, sem a água, fresca de fonte ou podre de esgoto de um tororó... Palavra 'tolerará': alongando-se como algo insuportável, mas que, contudo, já foi. Mas não com tudo o que não presta, que até o demo tem suplentes, espólio e herdeiros.

    Mas topo sim umas sandalinhas na cidade Parahyba, a que - por pudor - prefiro não chamar João Pessoa, que é nome de gente inafável... e, de todo modo, nome de gente não cabe em espaços tão largos, nem mesmo em estreitas ruas ou becos, a não ser que seja nome de anônimo bêbado ou bêbada - imagino um futuro beco da Pombinha, em algum canto, que será saudoso, do Rio Vermelho -, e não de gente política, que das gentes é das mais nefastas, como se tem provado, com raríssimas e honrosas exceções...

    Nome de gente não tem tal cabimento, o de caber em becos, ruas, praças, cidades, por querer se alargar por todos os sentidos, por vir estrondosamente na contramão ou no sentido esperado de uma política dos sentidos da Re Urbana que trata de tentar estabelecer positivas imagens para a posteridade. Caguem as pombas sobre aquela canhestra estátua (aqui se permite o cacófato) da avenida paralela e nos desviemos de estar ao lado dessa programática praga discursiva que é o dar nomes de gente a logradouros... não mais se logre isso em algum desejado futuro.

    E, antes que eu me esqueça e volte para as sandalinhas, imaginemos que se desse o absurdo de ser fundada - por conveniência de alguma política temporal e do agronegócio -, no interior de algum estado brasileiro, uma cidade com o nome de Luis Fernando Guimarães, que aliás é boa gente e de simpatia. Então eu iria gostar que, sem perdas de vida que não fossem as de transgênicas sojas, viesse uma praga de gafanhotos (não sei direito se quero isso?!?!?) sobre aquela cidade cujos filhos e filhas, quando por seu gentílico - que palavrinha!, teriam de dizer "sou luizfernandoguimarino" ou "sou luizfernandoguimarina", conforme o gênero da vítima da pergunta. Na melhor das hipóteses seriam simplesmente marinas e marinos.

    ...Continua...

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  11. Este comentário foi removido pelo autor.

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  12. Por essas voltas do caramujo da palavra, vou de Guimarães a Magalhães... Lembra-me a cidade maranhense de Magalhães de Almeida, naquele estado de Sir Ney, tão malvadamente acusado de transitar entre o condado de Nepott e o castelo da Rainha Chorupthilde. Mas deixemos o campo da maledicência, que é coisa feia, e lembremos que o natural de Magalhães de Almeida é magalhense, o que nos reconduz àquele José de Maria de deus, pai de Jesus, o crucificado. Por mim, seria magalino. Mas não sou José, cuja Maria teve com Outro um filho, nem sou Luiz, sou por Gonzaga, não sou Eduardo, sou por Galeano... Não sou magalino e também não sou sequer galino dos bons. Porém galinho. E lamentavelmente não desde menino, lamentavelmente sem a bola e o tino do menino de Quintino, se de outras peladas se tratasse.

    Ma come mai? Ma che Galina? Galina não é palavra italiana, mas parece. É nome próprio feminino em muitas línguas eslavas. A coisa já esteve mais russa e cabeluda na Bahia, não era nada comunista, socialista nem de longe, foi feia bielorussa - e Bielorrússia se traduz por Rússia Branca, hoje República independente, desde 1991 -, feia de cabeça branca, Bahia Negra recebendo seus afagos nos terreiros e afoxés. Isso já foi (?!). Oxalá não nos apareça nada parecido ou de pequeno cresça, Garnizé empertigado em sua estirpe, quem lhe queira seguir os passos nefastos. Já foi! E nem estávamos falando de galinos. Era de marinas e marinos que falávamos. Não era mesmo?

    E agora volto eu às sandalinhas. Por vias tortuosas voltei. E para dizer que tenho me deparado com algumas sandalinhas, não tendo até agora tocada em nenhuma delas, a não ser por um acidente de carnaval, e nem era bem uma sandalinha, não sendo contudo travesti. Foi só coisa de Carnaval e de cachaça. Também já foi!

    Melhor me pareceu uma última e recente. Ainda na rodoviária, antes de partir para Recife e daí voar num desses buzus aéreos para Salvador (que mais não é o voar na classe dita econômica, digo miserável), ainda ali, no caminho de umas escadas, topei umas sandalinhas delicadas, sorridentes, bonitas, afáveis, etcétritudo... E assim deixei a cidade Parahyba com vontade de voltar.

    Mas ainda estou aqui e gostaria de encontrá-lo, grande Roger, para quem sabe encharcarmos as botas e afundarmos o pé-na-lama, que vai no singular mesmo, pois se cada pessoa (ou quase todas) tem dois pés, a expressão só fala em atolar um. Talvez para que algum apoio nos sobre, se alguma razão ou comedimento ainda restar na cabeça.

    Cassinha tem todos os caminhos, essexuzinhansã loiribunita, mulher de muitos caminhos, madrinha de blogueiros que agora mesmo nos abriu um beco de duas saídas, duas entradas, e mais entradas e mais saídas, para bebermos em meio a tudo isso, a tudo isso!

    Abrassinté.

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  13. Ora meu querido irmão de roupa branca, abra logo essa garrafa, pois a aguardente já ferve por vir sanar a vontade de sobre a balaustrada da praia de Santana saudar esse bardo Ser que das nordestinas brisas paraibanas, volve suas botas largas a solar terra do Salvador. Este sim filho do senhor criador que de braços abertos fita assombrado a falta de sol a iluminar os donos dos largos Largos públicos, locais de doloso aroma ocre de uréia que se impõe de maneira inescrupulosa tamanha beleza. Um acinte aos pés que quase flutuam por suas sandalinhas as ruelas, becos e ladeiras. Sim ! Pombinhas, Rolinhas, Cravíneas, girassóis ...

    Por que não? Veja amigo Rildo, somos americanos derivados de um bucaneiro, traficante de gentes, assassínio de povos, culturas... Um bobo, louco em busca do brilho fácil por entre as ceroulas frouxas de seus tronos vazios. Américo que a América ainda chora seus mortos.

    Por isso tratamos a Baia com um pedante H, que nada diz de homem a não ser os omens que roubados de seus Hs, se sentem acima das Paraybas, das Baias, dos Salvadores, das Salinas das Margaridas, dotadas de seus pastos dourados de fungos transgaláticos, que fizeram da Baia de Todos os Santos uma grã-Nave-vá, a caber Malinoviskis, Bezouros, Catarinas Peixeiras, Luízes Gonzagas, Lucas Dantas, Gregórios de Matos, Castro Alves, Glaubers, além, óbvio e, por demais importante, as putas da Ladeira da Montanha, mães de todos os comunistas da terra de Cartarina Paraguaçu, seqüestrada pelo peixe de toca, traiçoeiro, por detrás, dos faccios de cana-de-açúcar, maldito Caramuru.

    Espero que estejas em terras do Salvador em sua data glória do 2 de julho, assim “xarfundaremos” o que nos resta de são no doce desequilíbrio do álcool, afinal só assim para entendermos a Paraguaçu cidadela onde se vai de uma avenida a outra de elevador, aonde existe um plano que é inclinado, aonde o credo da vida é o Bonfim...

    Abraços amigo!

    Ponhamos nossas botas na estrada,

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