segunda-feira, 27 de abril de 2009

Não sou mais um número.






Passei sem a pressa do dia-a-dia, havia decidido que a partir daquela data seria mais humano. Refletiria mais sobre essa condição e menos a respeito da acumulação. Permitir-me-ia! Na verdade acordara naquela manhã me sentindo uma máquina de repetição, sentei no colchão e lembrei-me de uma frase que o professor Saja me dissera há anos atrás e que, já lá, havia me chamado a atenção, mas, o on/off do cotidiano empoeirou-a de tal maneira que resgatá-la foi quase um parto. - “O que você está fazendo com a sua única vida?” Indagou-me o franzino professor.

Pois naquela úmida manhã, resolvi que já era mais que hora de ‘desmaquinar-me’, lembrar um pouco de que não sou movido a álcool, diesel nem tão pouco gasolina. Refletir que não uso óleo nas minhas juntas e nem tão pouco vivo apertando os parafusos de minha cabeça, apesar dos abundantes e diários pedidos para que isso seja feito. Não o farei! Não mais, nunca mais.

Como dizia no início, passava sem pressa e fascinado de como as chuvas que caíram nos últimos dias verdejou a cidade, quando vi você sentada no banco encostada no gradeado da praça. Seus cabelos vermelhos formavam uma vibração de tons intrigante com o verde que se impunha por trás de você. O verde e o vermelho vibravam como quem se repulsa e se atrai simultaneamente, e essa vibração realçava o alvo do seu rosto, não era um alvo pálido, pelo contrário, era um alvo vivo, resplandecia vida.

Permiti-me parar. Recostei em algo que só depois percebi ser a haste da barraca do vendedor de frutas que me olhava incrédulo. O que estava eu fazendo? Ele a montar a barraca apressadamente, e eu, absorto, em plena meia manhã de sexta feira recostado no seu meio de produção como se observasse a passagem de um cometa, um eclipse solar ou o surgir de seres alienígenas! Enfim, senti uma mão em meu ombro e, sem ser necessária uma única palavra, percebi que se não me afastasse ele não poderia por o restante dos apetrechos da tal barraca.

Dei alguns passos à frente, parei cruzei-me, pernas e braços, e continuei a observar aquela estranha vibração entre o verde, o vermelho e o branco.

A cidade estava com pressa, muitos passavam por mim e praguejavam. Era muita ousadia este ser parado, ali no meio da calçada, em plena meia manhã atrapalhando o fluxo, alguns chegavam a trombar em mim deixando claro que ali não era lugar de se estar. Mas essas idéias de ser um empecilho passavam muito remotamente em minha cabeça, afinal, reconstituído de minha humanidade sentia-me aconchegado em qualquer local. Não necessitava mais estar no interior de um automóvel, sob um teto, aconchegado em nenhuma poltrona. Ali, no meio do mundo estava ótimo.

Aquele local parecia que fora feito para mim. Um frescor maravilhoso batia em minha face, dava-me vontade de saborear um café sem açúcar lendo o jornal, ali mesmo em pé, só faltava um balcão. Mas, não poderia me afastar dali, algo me dizia que ali era o local onde eu deveria estar. E eu estava.

Um outro vendedor ambulante, com um jeito muito sutil, colocou uma caixa de produtos praticamente sobre o meu pé e virou-se para pegar outra. Percebi que aquela ação continha em si um “por favor, você me daria licença?”. Isso porque, hoje, recompus-me como humano. Pensei: se fosse ontem teria lido a ação do vendedor de rua como um “sai daí porra!” e certamente a essa altura estaria travando meu primeiro embate do dia, ou melhor, o segundo, pois também não teria aceitado com naturalidade a mão pesada do fruteiro em meu ombro.

Mas meu novo estado humano era um radiante filtro. Não possuía a menor importância a intolerância dos transeuntes frente a minha escolha de local para fixar-me, tão pouco importante se fazia a mão do fruteiro, nem a caixa do vendedor. Senti-me meio “poliânico” e quase enrubesci (como era costume nessas ocasiões em que me sentia meio ridículo). Mas, naquele momento, nem me avermelhei, nem transpirei, nem se quer dei-me o trabalho de observar se alguém ria de mim. Apenas descruzei a perna e aproximei-me mais do gradil da praça.

Lembrei-me de que ali os conjurados da “Revolta dos Búzios” foram executados só porque exerciam suas funções humanas. De uma hora para outra, em plena Praça da Piedade, apiedei-me daquela multidão que não havia ainda percebido o que eu percebi naquela manhã.

Como estava mais perto, ao retornar o olhar para o ponto vibrante de vermelho, verde e branco, percebi algo novo naquele oval alvo emoldurado pelo vermelho carmim. Percebi flutuar duas intensas esferas tão negras que brilhavam com a intensidade dos cristais.

- Você quer crédito pessoal? Ofereceu-me uma gentil moça. Acho que deve ter pensado: “alguém em plena meia manhã, parado na calçada de uma praça... Ou é aposentado, ou louco, ou desempregado, logo necessita de empréstimo pessoal”. Após o susto, sorri para ela e com um leve balançar da cabeça estabeleci a resposta negativa.

O movimento aumentava a cada minuto, as pessoas passavam de lá prá cá e de cá prá lá incessantemente, apressadamente. Para onde será que iriam todas aquelas apressadas pessoas? Pensei que em algum lugar, tanto em um extremo quanto no outro, iria travar. Não haveria espaço para todos passarem. Seria então o fim do caminho?

Tão absorto e feliz estava de me permitir tanto que não percebi, por uma fração de tempo, que algo mudara no cenário verde, vermelho, branco e preto.

Comecei a ouvir uma canção, voltei meu olhar a meu ponto principal e notei que agora ela empunhava um violão e sorrindo para mim cantava.

Words are flowing out like endless rain into a paper cup,
They slither while they pass they slip away across the universe.
Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my opened mind,
Possessing and caressing me.
Jai guru deva, Om.
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Images of broken light which dance before me like a million eyes,
They call me on and on across the universe.
Thoughts meander like a restless wind inside a letter box
They tumble blindly as they make their way across the universe
Jai guru deva, Om.
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Sounds of laughter, shades of love are ringing through my opened ears
Inciting and inviting me.
Limitless undying love, which shines around me like a million suns,
And calls me on and on across the universe.
Jai guru deva, Om.
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Nothing’s gonna change my world,
Jai guru deva,
Jai guru deva,
Jai guru deva...*

Imaginava ela, creio, “o que faz aquela criatura ali? Perdida no meio do mundo!”.

Gostei da condição de Homem.

Roger Ribeiro.
24 de abril 2009.

* Across The Universe.
(Lennon & MaCartney)

Um comentário:

  1. Mas uma vez fiquei maravilhada com suas palavras. A condição de "ser humano" não é para qualquer um. Não mesmo. Sentir-se "Poliânico" no mundo que vivemos, traz uma sensação de estar sendo ridículo mesmo.
    Fico sempre impressionada como você "enxerga" e sente as pequenas coisas do cotidiano e consegue colocar em palavras de uma maneira tão clara sempre com uma pitada(ás vezes punhado)de ironia.
    Beijão para você
    Romana

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