segunda-feira, 20 de julho de 2009

Rabugento, eu?!

Ela vivia aflita, acordava uma “pilha”, os nervos à flor da pele. Falava sem parar, pouco ouvia o que as pessoas a sua volta tentavam em vão alertar. Da janela de minha sala a via agitada, falava tão alto que, com o tempo, passei a participar de todas as questões que envolviam aquela família.

Como se já não bastasse, pegávamos de segunda a sábado o mesmo ônibus, ela descia um ponto antes de mim e sua aflição era tão grande que também no transporte ela não parava de falar. Falava tanto que encontrou uma “parceira”, que também pegava o mesmo transporte todos os dias, formavam uma dupla pictoricamente fascinante: ela, a minha vizinha de janela, era magérrima, os cabelos pretos escorridos e um corpo longilíneo, a impressão era que seus braços, finíssimos, eram compridos demais para o restante do corpo. Já sua amiga de percurso era o oposto, negra, baixa de corpo todo arredondado. Ou seja, era o encontro entre Caribé e Toulouse Lautrec.

As duas eram um capitulo a parte do dia, seja o meu, seja dos cerca oitenta por cento dos ocupantes daquele ônibus. Digo oitenta por cento, pois esses eram os assíduos daquele barulhento transporte coletivo. Os outros vinte por cento eram transeuntes sem vínculos emocionais com aquela, a essa altura, comunidade matutina.

As duas não disputavam a atenção, elas simplesmente não se ouviam. Enquanto uma falava, alto, a outra também falava e, igualmente alto. Vez por outra alguém se arvorava a entrar na conversa, sugerir um medicamento caseiro, uma simpatia, um tratamento alternativo, pois, claro, o assunto predileto das duas eram doenças. E olha que o cardápio era variado. Quando nada as atingia pessoalmente, partiam para os entes próximos, o irmão, a mãe, o cunhado... Cheguei à conclusão de que eram solteiras e sem filhos, pois nunca falavam das mazelas nem de maridos nem de filhos.

Da minha janela via que moravam crianças no apartamento dela, porém, nenhum homem, pelo que consegui perceber eram três mulheres, sendo uma mais velha que acabei por confirmar ser a matriarca, ela e mais uma moça, não sei se eram irmãs. Como não brigavam nunca cheguei à conclusão, aleatória, de que eram amigas e não irmãs. Residiam também quatro crianças, de idades que, suponho, variavam dos quatorze aos oito anos, chamavam-na de tia.

De dona Domingas, descobri seu nome, pois esta era amiga do cobrador do coletivo que invariavelmente a cumprimentava: -“Bom dia dona Domingas”, não mais que isso, pois se perguntasse, por exemplo: como vai? Vixi! Seria bombardeado por dores das mais variadas, rim, cabeça, varizes, e mais um cem número de dores e incômodos. Só o vi fazer-lhe esta pergunta uma única vez. Parece que aprendeu.

Já a minha vizinha, de janela (já que morávamos em prédios diferentes), nunca soube o nome. Em sua casa chamavam-lhe de Jó. O nosso querido cobrador dirigia-lhe um respeitoso “bom dia senhora!” e assim ficávamos.

Tenho de admitir que por mais difícil que estivesse a vida por esses tempos, não havia mau humor que resistisse às agruras de dona Domingas e dona Jó. Às vezes eu mesmo, acordava preocupado, afinal as contas só cresciam e o salário, por variados motivos, só encolhia, mas quando chegava no transporte e via aquelas duas a duelar quem sofria mais, quem conhecia mais a dor da vida, o sofrimento na pele, aí meu amigo minhas preocupações se tornavam insignificantes, como se diz por aí, coisa de menino mimado.

Um dia, cansado da rotina de descer sempre no mesmo ponto, fazer sempre o mesmo caminho, na mesma calçada esburacada, parar na mesma banca para comprar a pastilha para a garganta, resolvi descer no mesmo ponto de Jó, afinal era apenas um ponto antes do meu, seria até um bom exercício, principalmente para a mente. Dizem que é ótimo para fortalecer a mente, trocar sempre os caminhos, assim sendo desci logo atrás de Jó e fui lentamente caminhando a uma distância que não permitisse a ela achar que estava sendo seguida.

Passamos por dois quarteirões em linha reta até chegarmos a uma pequena praça onde se avolumavam muitos velhos mendigos e crianças de rua. Ao avistarem a Jó, dois pequenos vieram rápido pegar a bolsa e a sacola que fazia parte do traje diário. Parei e de repente ouvi um menino maior gritar: - “olha lá vem tia Dó”! Virei rápido e lá vinha toda “rebolante”, com um enorme sorriso no rosto a Domingas, trazia um carrinho de mão cheio de livros.

Parei, em uma banca próxima e fiquei por horas ouvindo Jó e Dó, se revezando em contar história, fábulas cálidas que não ouvia há quase cinqüenta anos. As duas riam, colocavam os menores no colo, ralhavam com os mais velhos que haviam feito algo errado. O tempo ali era eterno e feliz.

Caminhei para meu trabalho, assoviando a canção Sandra, e com uma sensação estranha. E dizem que quem ri à toa é que é feliz!

"Maria de Lourdes, porque me pediu uma canção prá ela?...."

Roger Ribeiro

20 de julho de 2009

Um comentário:

  1. Um professora de escola publica que ama criança como eu, só podia se identificar com tudo isso...

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