quinta-feira, 30 de julho de 2009

Você viu, não ?!


De longe já percebi que nada de novo havia. O ambiente continuava o mesmo. A mesma lâmpada horizontal fluorescente continuava, insistentemente, a oscilar apesar dos clamores de nós, assíduos freqüentadores daquele “clube de debates avançados e profundos da condição humana” (como nos referíamos carinhosamente ao nosso boteco de quatro portas em uma das esquinas mais movimentadas da cidade). Um local para bons e poucos.

Como sempre a turma da fumaça se põe nas portas, é uma regra consuetudinária de convivência civilizada. No balcão, um banco giratório de um pé fixo serve apenas para demarcar os círculos humanos e a temáticas que ali se estabelecem. Do lado interno do balcão, o querido Chico. Ele sempre esteve lá, existe uma aposta de quem primeiro esteve naquele recinto, se o velho Chicão ou a garrafa de aguardente Jacaré, que já não se fabrica há décadas e que aquele, talvez único exemplar na face da Terra, de tão idosa possui uma crosta de mais ou menos uns dois centímetros de poeira agregada.

Fui chegando e logo saudado longamente por todos. As piadas são geralmente as mesmas: “veio só hoje?”, “já íamos por falta!”, “vai tomar seu yogurt de ameixa?” E assim vai... Toda semana é a mesma coisa, cada um que chega, as piadas se refazem. Antes de definir em que circuito temático me estabelecerei, vou ao “confessionário”, ou seja, o último banco do balcão, no interior máximo do nosso phanteon, é reservado para a chegada. Explico melhor: o cabra chega, tira o paletó, se for o caso, pede para o Chicão guardar (paletó, pasta, livros, etc), e ali pede o primeiro líquido a ser sorvido.

Esse é o chamado “confessionário”, é o momento de se desligar do universo externo, abandonar os problemas do trabalho. Lá só é permitido problemas de natureza política ou passional, de trabalho jamais!

Sentado no “confessionário”, produz-se a geopolítica de seu estar. Hoje, por exemplo, definir que iria começar pela roda do futebol, afinal ontem teve jogo e as resenhas estão fresquinhas. Depois irei para o setor da política local, debates acalorados sobre a administração municipal e estadual, por fim, encerrarei no círculo da política nacional e internacional. Hoje, excepcionalmente, pularei a área de enfermidades e policial. Meu dia já havia sido complicado o suficiente.

Ainda no “confessionário” algo saiu do estado natural, percebi que alguém se aproximou e, rompendo o isolamento tradicional do local, colocou pesadamente a mão no meu ombro e sem gritar, porém com um tom de voz possante afirmou: -“se ainda não passou, vai passar!”.

Olhei assustado para o interlocutor e exclamei:

- Como?

- Não sou papagaio para ficar repetindo as coisas, sendo assim, preste atenção.

Entre espantado e incrédulo, busquei ao meu redor uma explicação, um olhar de solidariedade, alguma coisa que me dissesse que aquilo era real.

- Mas, meu amigo, o que deveria ou deverá, sabe-se lá, passar?

- Você não percebe? Estou sendo o mais didático possível. Se você prestar atenção irá entender e não necessitará ficar com essa cara de pata chocando o ovo da avestruz.

Nossa!!! Uma pata chocando um ovo de avestruz?! Que cena mais pitoresca. Procurei ver meu rosto no espelho oxidado das prateleiras ao fundo do balcão, queria ver o que significava aquela cara. Ele continuou:

- Venho sempre aqui e vejo você sempre com esse jornal debaixo do braço, esse olhar absorto como se a vida lhe permitisse esse isolamento exotérico. É bom ficar atento, pois pelo que estou percebendo ainda não passou, mas não se iluda, não tardará. Vai passar.

Levantei, me desloquei do confessionário, pois Chicão havia me sinalizado que estava demorando demais no local e novos clientes chegavam e precisavam se desintoxicar do mundo exterior.

Fiquei de pé, entre o círculo dos debates acadêmicos e as resenhas esportivas. Olhei para o homem da voz possante e tentei lembrar se já o tinha visto ali, ou em qualquer outro local. Passei a observá-lo mais atentamente. Ele era muito magro, alto, devia ter quase dois metros, e postava-se curvado para frente naquela postura que, não sei bem porque, sempre atribui aos tuberculosos. Sua face era de um branco cera, os olhos enormes e amarelados, o nariz era a mais perfeita descrição do que chamamos de “nariz de turco”, e das enormes orelhas saiam tufos de pelos pretos e brancos.

Vestia-se muito bem, trajava um terno completo cinza escuro e era um único habitante daquele “clube recreativo e cultural” que não havia deixado o paletó ao encargo do Chicão. Também não folgou a gravata, usava um sapato preto bico fino tão lustrado que dava para utilizar como espelho. Após a minuciosa checagem disparei:

- Amigo! Eu sinto te dizer, porém a metade do seu pensamento ficou só na sua cabeça, você falou parte do que pensou e como conseqüência ficou incompreensível!

Olhou-me com estranheza, segurou no braço do primeiro que passou e perguntou:

- Rapaz, me diga uma coisa, já passou?

- Não, desde que cheguei e isso já tem umas duas horas, ainda não passou.

- É... não estou entendendo esse atraso?

- É verdade, isso nunca ocorreu! Mas uma coisa é certa (esticou o pescoço e olhou para fora como se a constatar alguma coisa), vai passar.

- Sim, disso não tenho a menor dúvida, se não isso tudo já não existiria. Não estaríamos aqui.

Resolvi que era mais do que hora de esclarecer o que se passava. Pedi outro drink ao Chicão, me virei para ficar bem de frente ao meu eloqüente companheiro de bravatas de tavernas e procurei ser o mais claro possível:

- Afinal amigo, que diabos é que vai passar? Ou passou? Ou sei lá? Se não passar, tudo vai se acabar...

- Pelo amor de Deus, não diga isso! Beba rápido! Beba um gole, lave a boca e nunca mais diga isso. Você está ficando louco? Quer por em perigo a todos nós?!

Virei-me para o garoto que ele havia interceptado, mas ele já não estava, se locou no círculo da temática de gênero (pornografia sexual, na verdade). Perguntei à todos e a ninguém ao mesmo tempo, ampliei a voz para que todos me ouvissem, inclusive a área dos fumantes:

- Alguém aí, pode me explicar o que está acontecendo?

- Pssssiu, fale baixo. (Falou-me o enigmático homem de cinza)

Enfim curvei-me aos fatos e bradei ao vento:

- Tudo bem! Vamos sentar e esperar, não deve demorar a passar.

Sussurou-me:

- Disso tenho certeza.

Um vento muito forte passou por toda a extensão do boteco e uma velha negra acompanhada de uma criança entrou pedindo colaboração para a festa de Santa Bárbara.

De uma coisa eu tenho absoluta certeza agora. Que vai passar vai.

Roger Ribeiro.

24 de julho de 2009.

2 comentários:

  1. É... naquele "muquifo" acontece é coisa.
    Agora, acredito que ali é o QG da vanguarda intelectual soteropolitana!

    Sandra

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