quinta-feira, 16 de julho de 2009

Se fossemos apenas vozes




Pegou o telefone. Acabara de chegar da corrida diária e enquanto não estancasse o suor não adiantava tomar banho, leu o número anotado em um pequeno pedaço de papel e ligou. Não havia sido uma ação premeditada, nem mesmo sabia em que momento decidiu por ligar, mas ligou. Nem chamou, caiu direto na caixa com aquela voz inconfundível ameaçando que o número chamado estava indisponível e que após o toque iria para a caixa de mensagem sujeita a cobrança. Desligou rápido, antes que a ameaça se concretizasse, afinal não era uma ligação para um comunicado, era apenas uma ligação.

Para variar estava meio atrasado, os afazeres eram muitos, porém o bolso e a conta bancária não correspondiam àquela eterna correria a que estava exposto. Por isso, ao pegar o telefone sentiu uma alegria irresponsável, pois estava realizando algo completamente fora do espartano rol de afazeres do dia! Ora, fazer o quê? Este hiato de tempo se impôs, portanto não era culpado. Podia ficar parado matutando, olhando para o teto, para o chão, andando nervosamente pelo pequeno apartamento... Então dentre as opções, fazer a ligação era a melhor, já que tem de ser... Que seja, não é mesmo?!

Com a frustrada tentativa de comunicação, rapidamente mudou de rota e foi encher uma vasilha para molhar as plantas que habitavam com ele o apartamento trazendo um ar alegre, quebrando a solidez fria das paredes que separam pessoas, vizinhos. Lembrou que não conhecia sua vizinha, passou por ela umas três vezes, olharam-se e trocaram um “olá”, ao qual obteve como resposta um “tudo bom?” de passagem e que não carecia de resposta, era algo automático. Na página 62 do livro dos diálogos automáticos está lá: vizinhos. Ali, você encontra este profícuo diálogo narrado acima. Sabia que ela era muito bonita e sempre pensava: um dia que não estiver com tanta pressa direi isso a ela.

O telefone interrompeu sua ação e seus pensamentos. Deu um passo e já estava à frente do pequeno aparelho fixado na parede. Atendeu:

- Alô... Alouu...

- Alô... Tio Raul?

- Quem? Nãã...

- Olha estou retornando uma ligação que estava gravada aqui no meu aparelho de uns minutos atrás.

Mas a voz não correspondia ao número! No fundo ouviu alguém falando:

- avisa que o número é meu.

Achou engraçado, acabara de estabelecer por apenas dois aparelho um triângulo de conversação. Reconheceu a voz dona do número. Não havia portanto ligado errado, apenas a pessoa que retornou não era a dona do número e sim uma voz alocando um número que não lhe pertencia, porém com autorização da voz que mora naquele número. Lembrei da parede, da vizinha, do livro de diálogos automáticos e imaginei que aqueles sólidos e frios aparelhos possuíam o mesmo signo das paredes dos apartamentos.

No tal do livro dos diálogos deve ter assim: telefone. Quando tocar, deixe-o tilintar por três vezes, assim não demonstrará ansiedade pela ligação, então diga: alô. Aguarde a resposta. Se perguntarem quem está falando, não responda. Afinal, quem ligou é que tem de se identificar. Então pergunte com quem quer falar... E assim vai.

- Ah! Sim, fui eu que liguei mesmo.

Fiquei esperando que a voz não pertencente ao número falasse novamente. Necessitava me certificar de uma coisa.

- Sim, espera um pouco que vou passar o aparelho...

Confirmei! Não estava enganado, era uma voz encorpada, grave e afinada, não variava de tom em meio às palavras, apenas nos momentos certos variava a entonação. Uma mulher de voz forte, grave, firme.

- Espera! Se eu fizer uma canção você canta?

- Heim!? Não entendi?

- Se eu fizer uma canção, você canta?

- Mas eu não sou cantora! Sou apenas prima da dona do número, que por sinal está aqui do lado pra falar com você.

- Mas você nunca pensou em cantar? Ou melhor, cantar não é pensar, cantar é cantar e pronto. Você nunca cantou?

- Bem, cantar aqui e ali nas rodas de amigos a gente canta, não é? Mas daí a cantar mesmo... Nunca!

- Pois saiba que não consigo ver você fazendo outra coisa a não ser cantar!

- Mas você nunca me viu!

- Sim! Mas olhe só, estou em um número e você em outro, ligados por cabos e mais cabos. Eu nunca te vi, mas já falei mais com você do que com minha bela vizinha que já vi por três vezes e que estamos a apenas uns doze centímetros de distância um do outro. E mais, não tive vontade de fazer uma canção e nem tão pouco de convidá-la para cantar.

Ouvi risos e a voz arrendatária do número do aparelho que falava comigo comentou, provavelmente com a dona do número: - ele é louco é? Confesso que apurei a concentração para saber o que falavam. Ao fazer isso percebi que mais ao fundo tocava uma música, era uma canção antiga e muito dificilmente poderia ser de um rádio, afinal conhecia bem o perfil das rádios dessa cidade e seus programadores, achei difícil que algum deles me surpreendesse programando aquela faixa, daquele disco para ser executada naquela hora, um pouco adiante da “hora da Ave Maria”.

Elas riam do outro lado e não conseguia perceber o que era tão engraçado, mas se alguém ri com você é um bom sinal, né? Já imaginou se as pessoas olhassem para você e desabassem em pranto!? É melhor produzir o riso, não é mesmo?

A voz mudou, a dona do número havia resgatado-o.

- Olá, como vai? Já correu hoje?

- Acabei de chegar dela e, pra variar, já estou quase de saída para o trabalho, o terceiro turno!

- Nossa! Não acredito... Você ainda vai trabalhar hoje?!

- Pois é, é um hobby que desenvolvi para não ficar entediado!!! E você, passeando muito? Matando a saudade da terrinha?

- Pois é, morro de saudades daqui. Devagar vou revendo a tudo e a todos. Aliás, quando vamos nos ver?

- Olha vai ser um pouco complicado, afinal você já sabe não é mesmo?

- Sabe o quê?

- Ora, desde uns trinta dias atrás, estamos em planos diferentes. É tudo igual sabe, mais os planos são diferentes e um não perpassa para o outro enquanto estiverem nessa condição.

- Mas como assim? Você está bem?

- Sim, apenas em outro plano. Olha, tenho de ir, divirta-se muito aí, heim! E lembre-se do que diz a música que tava tocando. “A íris do olho de Deus tem muitos arcos!”.

Um beijo, até um dia.

Clic.

Roger Ribeiro.

10 de julho de 2009.

Um comentário:

  1. Sou deixo de ler as crônicas de Roger á minha (total) revelia. No mais, sou leitor assíduo e exigente.

    Elieser Cesar

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