terça-feira, 25 de agosto de 2009

Por um triz



O ônibus descia “voando” a Avenida Contorno. A vista era linda nesta manhã fresca, o mar abusava de seu azul e, de tão calmo, parecia um imenso território plano. Dava a nítida impressão de se poder andar sobre ele. Inebriado com a vista e o frescor marítimo que entrava pela janela, quase perdeu o ponto. O coletivo já estava saindo quando percebeu. Deu um pulo e gritou: “peraí motô!" Correu e desceu. “Ufa! Foi por um triz...”

Ao voltar para o mundo real, fora do coletivo, notou que havia uma movimentação estranha naquele local aonde descia do transporte de segunda a sábado dirigindo-se para o trabalho. Conhecia cada metro quadrado daquele espaço, cada pedrinha portuguesa, cada buraco, cada vendedor ambulante, tudo enfim estava devidamente esquadrinhado por dez anos de passagens diárias de ida e volta por aquele histórico largo.

Porém, naquela sexta-feira algo diferente estava ocorrendo. Do inconsciente brotou em sua mente a canção “De Frente Pro Crime” do João Bosco e passou a assoviá-la. Começou então a averiguar o que havia de diferente. Notou haver muito mais gente do que o normal.

Percebeu também que as pessoas (ou pelo menos a maioria delas), estavam paradas. O ambiente parecia estático. Mas logo aquele local de movimento constante?! Afinal, além de ser um entroncamento de várias vias de transporte, neste local e adjacências, um forte comércio popular se estabelecera, além, óbvio, do intenso movimento de turistas e “locais” a se dirigirem para o Mercado Modelo ou para o atracadouro de onde saem às lanchas para Mar Grande, Morro de São Paulo e Alhures.

Parou, como de costume, no tabuleiro de dona Zoé, para tomar o seu café da manhã. Solteiro que era, nunca tinha nada para comer em casa. Por isso, há anos fazia a primeira refeição do dia com a Zoé:

- Olá meu filho, pensei que não vinha hoje!

E, imediatamente, passou-lhe o pratinho de isopor com o garfo de metal, já que odiava aqueles garfinhos de plástico que, invariavelmente, quebram um dos dentes alojando-se no início da garganta arranhando-a, deixando a sensação de estar lá, atravessado o dia inteiro. Com ele não, o garfo tinha de ser de metal. Apenas uma vez se perguntou aonde seria que Zoé lavava-o? Chegou à conclusão que era melhor não saber, afinal até o Rei disse que tudo o que gostava era ilegal, imoral ou engordava. Assim sendo, comia com gosto sua carne de sol com aipim cozido passado na manteiga acompanhado por um refresco açucarado de maracujá. Isso há pelo menos nove anos às sete e trinta da manhã.

- Zoé, o que está acontecendo hoje aqui? Tem alguma coisa estranha! Veja, até Seu Carlos que nunca não sai da caixa registradora de sua padaria, está aqui! Tem algo estranho.

- Ora meu “fiu”, viste não? Oxi, tá ficando bobo?

- Hum... o aipim hoje está derretendo na boca! Mas viu o quê? O que há para ser visto?

- Você com essa sua mania de não crer, acaba por nunca olhar para cima. Pois é, lá que está o que queres saber.

- Lá vem você com sua conversa de beata rezadeira. Fica aí falando de céu, mas todo mundo sabe que sua fé está mesmo é nas encruzilhadas. (largou uma farta gargalhada).

- Sabe nada você. Fica aí com a boca e os olhos enfiado nesse prato e nem se apercebe o que está acontecendo ao seu redor.

- Sim e você vai ou não vai desembuchar logo o que está acontecendo?

- Eu não. Se todo mundo está vendo menos você! Olha prá cima, para de comer um minuto, aliás, já te falei várias vezes que se come é com a boca e não com os olhos, e olha prá cima homem.

- Como assim, para cima? (olhou para o céu sobre o Mercado Modelo).

- Não “fiu”, pro outro lado...


Voltou-se e olhou desta vez para cima do Elevador Lacerda. Arregalou os olhos, engasgou com a carne do sol. Pela primeira vez na vida ficou tão atônito que deixou o pratinho cair e derramou o refresco na barra de sua calça.


- Mas o que é isso, Zoé?! Ele quer se matar?


Lá em cima do Elevador Lacerda, via-se um rapaz, era longe demais para se perceber exatamente qual idade poderia ter, estava na ponta da laje. Como havia conseguido chegar ali? Não sei, mas chegou. Cá em baixo, uma multidão perplexa não tirava os olhos dele. Os vendedores ambulantes não mercavam, e até uma senhora que queria comprar uma água teve de puxar o vendedor pela camisa para que este abaixasse a cabeça para saber do que se tratava.


- Está ali desde as seis da manhã, “chegou antes do galo”, eu estava arrumando o tabuleiro quando Carlinhos do charuto me sinalizou. Desde então está lá. Faz tanto tempo que já correu até lista de como acaba.

- Mas que coisa Zoé! As pessoas ainda apostam? Coitado, deve estar desesperado.

Percebeu que as redes de televisão estavam no local, por isso pagou a “semana” para Zoé e dirigiu-se para a lanchonete dos coreanos, pois sabia que lá sempre tinha uma televisão ligada nestes programas de “mundo cão”.

Chegou e já havia uma pequena multidão se acotovelando para ver pela TV o que se passava. Empurrou um aqui, outro ali e conseguiu, enfim, ter a visão da telinha aonde o cinegrafista, muito habilidoso, havia conseguido fechar a cena, não apenas no jovem à beira do Elevador Lacerda, mas, principalmente, no cartaz que abria à altura do peito aonde se lia:

“Bia, neste dia tão importante, eu tinha de dizer que TE AMO”.

Roger Ribeiro.

21 de agosto de 2009.

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