sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O dia em que o Lá menor se apaixonou



Todos os dias, pouco importava se era início, meio ou fim de semana, podia também ser feriado pátrio ou religioso, era inabalável: entre quatro e meia e cinco horas, junto aos primeiros raios do sol, os meus sentidos despertavam ao som daquela melodia saída do piano de alguma daquelas dezenas de janelas. De onde será que vinha? Que mãos será que passeava tão delicadamente por aquelas teclas brancas e pretas?

Por várias vezes levantei e fui até a janela tentar decifrar esses enigmas. Procurava por luz acesa em alguma das janelas, mas nada! Ou não havia nenhuma ou algumas. Tentei apurar a audição a ponto de definir o nascedouro geográfico da melodia, nada! O som se propagava livremente naquelas quase sempre manhãs frescas de brisas leves. Às vezes imaginava um roteiro para cinema, essa era a única forma que encontrava para responder a todas aquelas perguntas.

Bolei de tudo, senhoras viúvas nuas desvairadas, enlouquecidas, jovens românticas sofrendo por perdas amorosas, meninas feias de áureas grandiosas, Jovens senhoras que tocavam para o corpo embalsamado do marido ou do filho no centro da sala... Em um ano criei mais argumentos e roteiros fílmicos do que toda a produção das companhias Atlântida e Vera Cruz somadas.

Porém, essa necessidade de definição só durou um ano, primeiro porque encontrei outro dilema para me preocupar, qual seja: numa dessas belas manhãs enquanto ouvia uma melodia triste, bem triste de Franz Liszt (sim passei a estudar música para reconhecer o que vinha do piano) e bolava mais um argumento, percebi que todas as histórias que criava sempre a protagonista era do gênero feminino, seja nova, madura ou velha, mas sempre era mulher e o piano sempre negro e opaco.

Fiquei efetivamente preocupado com isso, seria um sintoma de paranóia? Uma fixação materna, uma carência afetiva, uma patologia emocional, uma fixação na fase infantil? Eram perguntas e mais perguntas sem respostas, busquei ajuda, alistei-me no rol de pacientes de um psicólogo, fiquei um mês, percebi neste tempo que a psicologia é uma ciência lenta e cara, nestes trinta dias e quatro encontros o meu querido “médico de maluco”, não me disse nada e eu acumulei um novo problema: dívidas.

Larguei as consultas e resolvi que se havia vivido até aquele momento bem com minha fixação pelo sexo oposto, então continuaria assim, voltaria a ser um feliz sociopata romântico e não endividado. Foi difícil chegar a esse ponto, mas cheguei e percebi que tudo isso havia me desviado do melhor, ou seja, a ação de apenas me permitir embalar pela melodia matinal produzida pela busca incessante da carícia dos dedos nas teclas do piano e virse-versa. Mãos finas e femininas e piano negro opaco, claro.

Notei que ninguém nunca reclamou, apesar do horário, nunca ninguém gritou da janela: “para com essa zonada aí!”. Na verdade, creio que todos como eu, achavam-se privilegiados, afinal, em uma cidade como esta, com todas as cruezas das cidades grandes, com todo o corre-corre, o barulho, a sujeira, o mau-humor, os atrasos, trânsitos, incompreensões, enfim, com tudo o que compõe a vida urbana contemporânea, quantas pessoas têm o luxo de serem acordadas por uma suave e linda melodia?

Sim, era uma benção, por isso após passar pela paranóia de ter de explicar tudo, quando eu evoluí para minha condição de imagem e semelhança do bem e me deixei embriagar pela música, então meus dias passaram a ter sempre a perspectiva de serem maravilhosos.

Uma hora, sempre por uma hora, alguém, aquela mulher, presenteava a cidade com sua sonoridade. Passei a buscar variações, levantava e sentava no chão da cozinha, vestia uma bermuda e ia para a varanda, descia do prédio e ficava no meio da rua, subia ao último andar e, após longa negociação consegui fazer uma cópia da chave que me dava acesso ao teto onde fica o tanque d’água do prédio. Em cada lugar o som chegava diferente, mais grave, mais agudo, ecoando, reverberando, equilibrado...

Um dia fiquei parado no meio daquela imensa avenida ouvindo-a tocar e imaginei aquele som seguindo avenida afora, sem nada para detê-lo, desviar o seu caminho. Invadiu-me uma sensação de infinitude e liberdade, que jamais havia sentido.

Em uma manhã especial, quando o céu foi ficando todo rosa e uma bruma de água pousava lentamente sobre a cidade, ela tocou Ave Maria de Schubert. Estava na janela esperando o início do concerto e fiquei paralisado. Costumava ouvir essa composição, pois tinha o hábito de correr ao final de tarde e a rádio que escutava enquanto me exercitava, às 18 horas tocava-a com os mais variados interpretes, porém, com aquele sentimento, com aquela sensibilidade, eu nunca havia escutado.

Era quase que a idealização do que seria o paraíso! Aquela bruma de água, o roseado celeste, o cheiro da terra úmida e aquelas notas sonoras suspensas no ar. Cheguei a parar de respirar para não interferir. Cheguei à conclusão de que deveria ser o dia do aniversário dela, anotei no calendário da cozinha, só podia ser isso.

Nesse dia, nada conseguiu me aborrecer, no trabalho todos brincavam de que eu estava com cara de apaixonado, com ar de quem viu o passarinho verde, ofereceram-me a trilogia de Polyana, me aconselharam sobre os perigos da paixão, etc, etc.

Fui ao banheiro do escritório e percebi que realmente havia algo estranho na minha fisionomia.

Pois amanhã faz exatamente um ano daquela manhã, faz também um ano que entrei para o conservatório de música da Universidade Federal e estudei compulsivamente. Agora estou aqui, no ônibus indo à Praça da Sé, marquei com meu amigo-irmão Pedro Santana, na loja de instrumentos musicais, pois ele irá me ajudar a escolher um violino.

Amanhã ela terá uma grande surpresa! No dia do seu aniversário, de uma janela que ela não saberá qual, o som do meu violino irá dançar junto à melodia que, por tanto tempo solitário, aqueles delicados dedinhos produziam nas teclas do piano negro opaco. Será um amanhecer para a eternidade.

Roger Ribeiro
30 de outubro de 2009.

Um comentário:

  1. Essa tem alma, a sua verdadeira alma! Leve e ao mesmo tempo intensa, como vc!

    Sandra

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