segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Essa Bahia...



- Não é por mal, mas eu não caibo mais neste anel!
- Mas não é para caber, é para passar. Na verdade este é um portal, uma passagem. Só após passar por seu interior é que conseguirás ver o que existe do outro lado.
- Desculpe-me, mas tome o seu anel. Ele tornou-se grande demais, ou pequeno demais, não sei bem, mas não cabe mais nos meus dedos.

Pegou o pequeno aro, prateado, sem nenhum valor de jóia, aparentemente um aro comum de um metal plebeu qualquer. Olhou-o, balançou negativamente a cabeça e colocou no bolso da camisa verde que costumava usar às segundas-feiras para que a semana começasse com a esperança necessária de renovação.

Estava visivelmente entristecido, mas não se via em seus olhos nem mágoa, nem irritação, sabia que presenciava apenas e somente a renovação. Sabia ser o responsável por isso, esta era a sua função. Desde sempre teve a certeza de que aquele largo anel de outrora tinha apenas e somente uma tarefa a realizar, ou seja, preencher aqueles dedos até que não lhe coubesse mais.

Sem olharem para trás, saíram andando, cada um em uma direção, o tempo foi lhes redirecionando, um ensinando ao outro a necessidade do caminhar, a importância de colocar seus pés sempre um a frente do outro, passos firmes em direção sabe-se lá para aonde. Mas os passos foram dados.

Ambos andavam meio que a deriva, apesar de terem destino certo. Seus corpos se deslocavam no espaço, mas suas mentes permaneciam estáticas, uma de frente para a outra e entre elas uma grande interrogação.

O aro plebeu agora se debatia naquela imensidão de bolso vazio, não havia nem uma moeda, uma bala, um bilhete velho para lhe fazer companhia, por isso debatia-se de um lado para o outro do tecido ficando cada vez mais frio, foi perdendo o calor da pele humana. Tudo perdia o sentido, era escuro naquele local e, sem a luz, aquele anel virava um aro qualquer. Poderia ser confundido com o pedaço de uma engrenagem que, sem função, seria facilmente atirado ao lixo sem que fizesse mal nenhum a nada nem a ninguém.

O seu dono, completamente absorto entre a nebulosa do fato e o ato, descuidou-se e ao fazê-lo, tropeçou no tabuleiro do vendedor ambulante, derrubando-o e espalhando uma infinidade de quinquilharias pela calçada da Avenida Sete de Setembro em plena segunda-feira às 11 horas da manhã.

Foi um corre-corre danado, enquanto o mascate dono do tabuleiro fazia uma barreira com os braços para evitar que as pessoas pisoteassem as mercadorias, o homem da camisa verde apressou-se em abaixar para recolhê-las.

Mais uma vez descuidado, ao abaixar-se não percebeu o anel saltar do bolso e sair girando calçada afora. O tempo correu e ele absorto no ato de recolher aquela quantidade enorme de Pata-Patas, Misses (como se chamam os grampos para cabelos aqui na Bahia) e, o pior, os espelhinhos ovais que deveriam ser recapturados urgentes, principalmente aqueles que estivessem com a foto da mulher nua virada para cima, sem contar os impropérios que o nosso querido mercador dirigia hora a ele, hora ao mundo. Enquanto isso o anel girava sem parar passando incólume por todos os entraves possíveis e imaginários.

Ao findar a ação de recuperação dos produtos e após ouvir coisas do “arco da velha”, continuou o seu caminho, sem perceber que havia perdido o seu precioso aro plebeu.

Já este continuava sua trajetória de fazer inveja a Roberto Carlos em sua fase de aventuras. Ricocheteava em um pneu que o arremessava longe, sendo chutado, displicentemente, por senhoras gordas abarrotadas de sacolas. Enfim, já endoidecido pela indefinição de caminho que tomaria, foi finalmente interceptado de sua perene deambulação por um impassível poste de iluminação. Deu alguns giros em seu próprio eixo e por fim refastelou-se no chão.

A cidade ocupada não percebia a sua presença, pés passavam zunindo por sobre ele, pontas de cigarro quase o alcançavam, porém um olhar, um olharzinho, nada! Ninguém o percebia. Lá estava, largado ao relento, “uma porta”, um “portal” e a humanidade sem saber para aonde ir não percebia que ela poderia indicar-lhe a direção.

Ao fim do dia uma movimentação diferente se aproximou daquele aro, panelas, tabuleiros e muitos panos se ajeitavam ao lado daquele poste, era um ponto de venda de acarajés, e antes de armar o tabuleiro a baiana de vassoura em punha passou a fazer a limpeza do local. Foi ao passar a piaçava que ela percebeu um brilho diferente e abaixou-se para apanhar.

Ao perceber ser um aro cor de prata, resgatou-o carinhosamente pedindo a sua ajudante que fosse à loja do ourives avaliar. Pouco tempo passou e a menina voltou com uma expressão de decepção, entregou o objeto e disse, - Seu Carlos falou que não tem valor nenhum. Sem dó, nem compaixão ele foi novamente largado, displicentemente sobre o tabuleiro que, no abre-fecha do fim de tarde, acabou rolando novamente para o chão.

O dia acabou. O homem da camisa verde percebeu a perda, mas sua perda do dia havia sido maior, por isso nada sentiu. A moça também acabou por sentir que algo faltava nos seus dedos, porém a decisão do dia foi tão difícil que nem conseguiu lembrar o que mesmo faltava em sua mão. A baiana nem atinava mais do ocorrido, a ajudante exaurida de abrir abarás, acarajés, empacotar passarinhas, bolinhos de estudante e tudo mais, nem se lembrava do pequeno aro prateado.

A noite foi passando e uma chuva torrencial caiu naquela madrugada do dia primeiro para o dia dois. O pequeno “portal” foi levado por uma forte correnteza de meio-fio e acabou entrando por uma “boca de lobo”.

Ao raiar do dia a cidade inteira se perguntava o que seria aquele brilho prateado que cegava a todos que olhavam para o mar.

Ela estava radiantemente feliz, era dois de fevereiro.

Roger Ribeiro.
04 de fevereiro de 2010.

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