quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Um dia acontece



“Parece que foi ontem,
Mas já faz tanto tempo,
Na linha do horizonte,
Eu perdi você de vista.
Te procurei...”*

Hoje ela, ao acordar, percebeu que seu peito estava aberto e o coração, apesar de estar acomodado na caixa torácica, estava totalmente à mostra, não havia pele, carne, músculo, nada! O peito estava desnudo e o coração completamente aberto ao espaço.

Olhou aquela situação inusitada e apenas pensou que teria de lavar o lençol e o colchão, pois estes deveriam estar empapados de sangue. Virou-se para o colchão e lá estava ele no chão, com seu lençol alvo a cobri-lo, as marcas do seu corpo ainda se faziam presentes, porém sangue ou qualquer outro líquido não havia. Apenas o seu peito estava aberto e seu coração à mostra, nada mais.

Ficou aliviada. Passou a iniciar o seu dia como qualquer pessoa: higiene pessoal, café amargo com pão integral, buscou na fruteira, depois na geladeira uma fruta e nada, haviam acabado, era hora de fazer feira. Talvez à noite após o encontro.

Parou um pouco à frente do espelho e ficou por longos minutos observando aquele órgão a pulsar ritmado, passou do ritmo à cor, notou que parte era de um vermelho quase aceso e outra parte arroxeada. Fluxo e contra-fluxo, comprime e expande, notou que conseguia acompanhar o fluxo sanguíneo por todo o seu corpo, era como se o líquido bombeado pelo coração assumisse uma forma fluorescente, perceptível por todo o seu corpo.

Ficou impressionada com a beleza feroz daquele impulso que entrava e saia de órgãos para dentro de dutos que se expandiam e, com uma pulsação de expansão e retração, impulsionava aquele líquido para diante. Veio-lhe na mente uma música, correu até o aparelho de som e colocou Purple Haze para tocar, o som estava alto, bem alto e a guitarra de Jimi Hendrix combinava exatamente com toda a experiência daquela manhã.

Colocou apenas o seu chapéu de palhinhas verdes na cabeça e saiu. Não havia porque cobrir o seu corpo que neste exato momento parecia uma floresta densa, fechada, quase inexplorada.

Ao entrar no elevador, encontrou Dr. Carlos, um médico renomado, grande cirurgião, reparou que sua cabeça estava desnuda. Lá estava o doutor impecavelmente de branco, com sua pasta preta. Nunca o vira de outra forma, porém sua cabeça que até ontem possuía um cabelo grisalho muito bem cortado e penteado, hoje não possuía nada, nem cabelo, nem pele nem osso, nada, a massa cefálica estava toda exposta e movimentando-se como se fosse uma medusa marinha opaca. Cumprimentamo-nos e, ao chegarmos à garagem, cada qual seguiu o seu caminho.

Entrou no seu automóvel que até minutos atrás era verde, sempre sorria de pensar que o seu carro combinava com seu chapéu de palhinha, porém nesta manhã, ao entrar no veículo, este ficou todo transparente. Tudo funcionava perfeitamente, mas translúcido. Esperou o carro da frente sair e ganhou enfim a rua, não conseguia ver se estava atrasada, pois ao por o relógio no pulso, ele desapareceu. Estava lá, sim ela ouvia o seu incessante tic-tac, mas ele em metal e plástico, nada.

A quatro quadras, parou para pegar a sua colega de trabalho que fazia rodízio de carona, cada semana uma ia de carro e levava a outra. Ela entrou no carro, comentou que havia passado uma noite péssima e que estava com os nervos à flor da pele. No sinal fechado, ao virar-se para ela notou, realmente, ela não exagerara, quase não se via pele, era um emaranhado de nervos que ia dos pés à cabeça. Comentou:

- Quer que pare em uma farmácia para que compres algo?
- Não, deixa prá lá. Com o tempo as coisas vão melhorando e o fluxo volta ao normal.
- Se quiser desabafar, é só falar. Sabe que estamos aí para o que der e vier não é mesmo?
- Obrigada, você é realmente uma grande amiga.

No trabalho, o de sempre, que coisa mais repetitiva, o dia se arrasta, vem a hora do almoço, o meio da tarde, o momento do cafezinho, as micro reuniões setorizadas. Parece até que o fluxo do sangue tende a parar. Olhou de relance para seu peito aberto e realmente percebeu que a pulsação tão poderosa na manhã, tornara-se preguiçosa, quase burocrática.

Enfim dezoito horas, pegou seu chapéu, chamou a parceira de carona e chamou o elevador. Durante o dia não havia notado, mas agora com a cabeça de volta ao mundo percebeu que seu Arlindo, o ascensorista, que estava naquele elevador desde o primeiro dia que pisou naquele escritório, e isso já fazia quinze anos, transformou-se em um grande dedo, um indicador e nada mais.

Pegou o automóvel e ganhou as avenidas, deixou a companheira na porta do shopping e foi em casa, nem colocou o carro na garagem, seria uma parada rápida: uma chuveirada, um novo perfume, um novo chapéu, desta vez azul e lá se ia novamente entrando em Avenidas, desaguando em ruas, ruelas, becos até o destino final. Neste o guardador de carros já a esperava com sua vaga, afinal já eram cinco anos, todas as terças e quintas, lá estava ela entre as 19:30 e 20:00 horas. Não havia falha.

Estacionou e com o coração pulsando de uma forma que se comprimia quase na garganta, dando aquela sensação de que irá sair pela boca, entrou no popular bar e restaurante e encostou-se no banco do balcão à espera de uma mesa. O fluxo era tão intenso de ansiedade que suas têmporas estavam dilatadas.

Mesa a postos, pegou seu drinque e sentou-se, examinava o cardápio, apenas para passar o tempo, afinal conhecia-o de trás prá frente. Não demorou muito uma flor lhe foi estendida, pegou-a. A cadeira ao seu lado movimentou-se, primeiro para trás, depois para frente, ocuparam-na. Uma voz masculina, sem muito brilho soou:

- Como foi seu dia?

Ela olhou aquela voz, uma voz que há anos ouvia e que, naquele dia, apenas naquele dia percebeu não ter um corpo, um odor, uma cor, não ter nada... Apenas uma voz.

Levantou-se lentamente, deu um beijo leve naquela voz, viu seu coração aberto derramar uma, apenas uma lágrima, porém de uma cristalinidade nunca vista e saiu sem dizer nada. Apenas cantarolando para si mesma.

“Lá vai uma vela aberta,
Se afastando pelo mar,
Branca visão que desperta,
Anseio de navegar...”**

Roger Ribeiro
22 de fevereiro de 2010


* Parece Que Foi Ontem (Itamar Assumpção)
** Vela Aberta (Cid Franco)

2 comentários:

  1. Olá, li há dias atrás mas "sem tempo de verbalizar", vamos lá. Que sensibilidade, que poesia, e alguns trechos são especialissimos,olha só. "A pulsação tão poderosa na manhã, tornara-se preguiçosa, quase burocrática". Arregaçe as mangas e siga em frente, torço por você. Um beijo grande, Teca.

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