segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Eu ouvi, tenho certeza que ouvi!



- Era necessário mesmo apagar todo e qualquer vestígio?
- Se não fosse não o teria feito.
- Mas nós nem discutimos a questão!
- Você não lembra? É conveniente, tentei algumas vezes falar sobre a questão, mas agora é tarde. É como se nunca tivesse existido.
- Mas nós sabemos que existiu!
- Isso é um problema, não tenho como apagar isso. A única opção seria a morte, acho que isso está fora de cogitação.
- Por que será que tem de ser assim?
- Não sei, mas acho que aqui neste elevador não é o melhor lugar para filosofarmos sobre o tema.
- Não sei como você consegue se manter tão distante?! É frieza demais.
- Paciência, eu sou assim. Chegamos, vamos.

Desceram do elevador e eu fiquei. Ainda iria subir mais dois andares. Mas que diacho seria aquilo? O que eles teriam ceifado de existência? Que coisa, pra que peguei esse elevador com essas duas pessoas? Isso não se faz.

O elevador parou e me dirigi à porta do consultório para minha avaliação semanal. Tem alguns anos que venho aqui em busca de algo que não faço idéia do que seja. Mas hoje eu quero trabalhar essa minha curiosidade doentia. Ora, eu tenho nada haver com o que aquele casal eliminou?! Mas e se eles cometeram um crime? Eu não posso ficar omisso, eu sei que ela, principalmente ela, cuidou para que nem um rastro permanecesse, e eu sei, eu os vi, posso reconhecê-los em qualquer lugar e a qualquer hora.

Acho que não vou ao terapeuta hoje, vou à delegacia, vou denunciá-los enquanto ainda estão no prédio. A polícia pode cercar o prédio e prendê-los. Sim, isso é o certo a ser feito.

Virei de volta, chamei o elevador que de imediato abriu a porta, entrei, apertei o térreo e observei a porta se fechar. Seria um assassinato? Sim, acho que pode ser afinal eles tinham cara de assassinos mesmo. Lembro de um filme que vi assim mesmo. Um casal que cometia vários assassinatos só pelo prazer de fazer de tal forma que nunca fossem pegos. Afinal, eu vi o sorrisinho maligno que ela deu quando disse “a única opção seria a morte”, talvez eu esteja até mesmo salvando a vida daquele pobre homem. Não acho que isso não, eles são cúmplices. Ele só não participou da limpeza da coisa, mas certamente deve ter participado do plano e do assassinato.

A porta do elevador se abriu, fui até a portaria e preparei-me para perguntar onde ficava a delegacia mais próxima. De repente parei: Nossa! O que estou fazendo? E se não for nada disso? Quem disse que há um crime aí? Coitados! Como posso julgá-los desta forma? Eles poderiam estar falando de tantas coisas, poderia ser um móvel de família que foi dado, vendido, jogado fora, sei lá. Pode ser que sejam amantes e estejam se encontrando escondido, coisa feia, mas... Nada que diga respeito à polícia.

É, é melhor eu voltar e ir para minha terapia. Virei novamente e me dirigi ao elevador. Apertei o botão e aguardei, levou um tempinho e chegou, vinha do subsolo onde fica a garagem por isso algumas pessoas já o ocupavam, dei boa tarde e entrei.

- Você leu mesmo?
- Acredite.
- Meu Deus que barbaridade.
- É, mas agora não tem mais jeito, foi assim mesmo como te contei.
- E eles não disseram mais nada?
- Nada, era como se não fosse com eles.

O elevador parou, e aqueles dois senhores de terno desceram, ainda comentando o lido. Tentei aguçar a audição para saber do que se tratava, mas a porta fechou e só ficamos eu e a senhora que sei, é atendida pelo mesmo psicólogo que eu, o horário dela é depois do meu. Há anos a encontro na ante-sala do consultório, troco uma boa tarde e passo. Nunca soube o seu nome. Sorri para ela e disse: - chegou cedo hoje!

- É estava por aqui e não valia a pena ir em casa para depois voltar.

A porta do elevador abriu novamente e descemos. Na minha cabeça, estava a fala dos dois senhores. Será que eles estavam falando do crime que o casal anterior praticou? Só podem estar se referindo a isso, aliás, a cidade inteira deve está comentando horrorizada, e só eu sei que eles vieram se esconder aqui neste prédio de consultórios e escritórios. Eu sei onde eles estão e se não fizer nada eles continuarão impunes e cometendo um crime após o outro.

Meu Deus o que eu faço? Se ainda tivesse crédito no celular faria uma denúncia anônima, mas não tenho nem um centavo, bem que meu irmão sempre diz que eu tenho de ter crédito sempre, pois um dia posso precisar. Então eu poderia pedir lá no consultório para fazer uma ligação, mas aí todos ficariam sabendo que eu fui o denunciante, e se eles conseguirem fugir e vierem se vingar de mim?
Não... Não posso me expor, preciso encontrar uma solução. A porta do consultório abriu, a menina Cintia saiu me olhou e disse: - pode entrar.

Olhei para a senhora sentada e falei:

Olá, como você se chama?
- Maria da Graça, mas todos me chamam de Gracinha.
- Pois dona Gracinha, a senhora poderia trocar o horário hoje comigo, pois tenho urgência de resolver uma coisa. Eu ficaria hoje depois da senhora.
- Ora, para mim seria ótimo.
- Pronto então ficamos assim, a senhora entra agora e avisa a ele que depois entro eu.
- Pode deixar.

Levantou-se, toda satisfeita e entrou. Apressei-me e novamente chamei o elevador. Passou um tempinho a porta se abriu, novamente entrei apertei o térreo e desci. Saí apressado, passei pela portaria, já na rua, me dirigi à banca de revista mais próxima.

- O senhor tem cartão telefônico?
- Acabou, vendi o último agora mesmo.
- Poxa! Mas tem nada não, o senhor coloca crédito em celular?
- O senhor está sem sorte hoje, o sistema caiu desde o meio dia e até agora não retornou.
- Sabe onde posso encontrar cartão telefônico para vender?
- Olha o seu Manoel, aquele senhor ali que vende água e guarda carros sempre tem, ele não vende, mas aluga os créditos.
- Valeu, vou lá falar com ele.
- Seu Manoel, tem cartão telefônico aí?
- Olha tem esse aqui, mas acho que tá sem crédito, deixa eu ver.

Testou o cartão no telefone público e voltou-se para mim:

- Olha só tem um crédito, serve?
- Serve, é só isso mesmo que necessito, quanto custa?
- Um real.
- Caro heim seu Manoel!
- É meu filho, mas caro mesmo é comprar comida pra meus quatro filhos pequenos.
- Tudo bem.

Paguei e fui ao “orelhão”, pensei, eles não vão sair impunes deste prédio. Disquei o número enquanto pensava. Chamou, atenderam.

- Serviço Público de Remoção, boa tarde. Em que posso ajudá-lo?
- Não é da polícia?
- Não senhor aqui é 192, a polícia é 190.
- Desculpe, liguei errado.
- Por nada, boa tarde.

Eu não acredito que fiz isso! Só tinha um crédito e eu consegui ligar errado.

Voltei cabisbaixo para o prédio do consultório e ao chegar na porta os vi. Eles vinham saindo.

Apressei e me coloquei logo atrás deles, pararam na calçada, esperavam um taxi, concentrei-me na audição e passei a escutá-los. O homem falava:

- Viu o que o pediatra disse?
- Ouvi, claro, não sou surda.
- Eu só quero ver o que você vai fazer quando Clarinha abrir o berreiro à noite.
- Eu continuo com a certeza de que já era mais do que hora dela largar aquela chupeta. Clara já está com quatro anos e os dentes estavam ficando tortos...

Chupeta? Clarinha? Pediatra? Ai meu Deus o que quase eu fiz! Saí rápido para dentro do prédio, preciso falar com meu terapeuta urgente.

Roger Ribeiro
29 de janeiro de 2010.

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