terça-feira, 20 de abril de 2010

Ling,Ling, Lin, Rouxinol!


Apertou o nó da gravata, passou um pano seco para dar brilho no sapato, fechou o paletó, passou a mão esquerda nos cabelos e saiu sem olhar para trás, sem dizer uma palavra, sem alterar o semblante. Os olhos cor de mar da Penha na Ilha de Itaparica pareciam brilhar mais intensamente naquela noite escura de lua nova.
Era o momento de escutar as criaturas da noite, por isso se fazia necessário todo um ritual de preparação; durante o dia o mínimo deexposição a sons altos ou estridentes, agudos demais, falar então... somente o indispensável. Era preciso estar pleno, todo aberto, era como se o corpo como caixa de ressonância precisasse estar vazia, limpa, limpíssima, para captar até os sons mais longínquos, de freqüências quase imperceptíveis, quase como se necessário fosse ouvir o som da luz se espatifando na parede!
Era realmente uma figura estranha: alto, muito alto, magérrimo, curvo para frente daquela forma em que o nariz chega sempre muito antes do resto do corpo nos lugares, vestia-se de uma elegância um tanto quanto, se não assustadora, pelo menos morbida. Terno completo e negro, acompanhado de uma camisa de seda grafite e o mais claro era a gravata italiana de um cinza chumbo, ornada por uma garra com um rubi. Logicamente, evitava locais de grandes aglomerações ou intensa presença de veículos. Seus locais eram ruelas residenciais de preferência com alto índice de moradores da terceira idade, pois estes dormiam cedo, silenciando suas casas e arredores, havia mapeado a cidade e sabia de todas as ruas e ruelas que possuíam estas características.
Certa feita, ao ser entrevistado por estudantes universitários, destes que acham que o que não é regra é cult e é moderno gostar de pessoas cult (como costumam chamar os seres que minha geração chamava simplesmente de malucos). Perguntaram-lhe porque não ia morar numa mata, na Chapada Diamantina, no Capão, afinal cult que é cult, vai pro Capão se integrar com a natureza, Nosso amigo curvado que estava com o queixo apoiado nos punhos e o braço no joelho, abriu levemente os “líquidos” olhos azuis esverdeados e disse, calmamente: “sou um homem urbano”.
Já não era jovem, aliás, longe disso. Seus cabelos ralos e de longos fios grisalhos demonstravam claramente se tratar de um senhor, criavam-se muitas histórias que iam cada vez mais mitificando aquele senhor de tez alva cera, mãos compridas e dedos finos, aquilo que costuma-se chamar de mãos de pianista. Diziam que já havia sido professor universitário, coveiro, pianista, pintor. Também surgiam histórias horripilantes que o vendiam como vampiro, fantasma, seqüestrador de crianças e, aquela verdade para todos nós, que há décadas atrás, tínhamos não mais do que dez anos: lobisomem, sim na nossa cidade havia um legítimo.
Estas lendas eram passadas de um para o outro e, ainda hoje, todos explicam suas saídas apenas na lua nova ao cansaço que tinha de tantas e tantas metamorfoses de homem para lobo e de lobo para homem. Possuía um par de orelhas enormes. Será que assim ficaram de tanto ativar para melhor ouvir? Não sei, mas que eram enormes isso eram! E com este belo par de orelhas saia para escutar as criaturas da noite.
Dizia que as urbanas eram as mais instigantes, comunicavam-se por sons nunca antes perceptíveis pelos homens e viviam em todos os lugares, nas frestas, nas crostas das arvores, debaixo do asfalto, das calçadas, algumas eram aladas e, como morcegos, se guiavam por reverberações sonoras, andavam por debaixo da terra, mas acima de tudo emitiam sons.
O velho grisalho não carregava consigo gravador, microfones, nada para registro. Sabia que estes seres eram muito ariscos, não gostavam da civilização humana e não queriam por ela serem descobertos, sabiam que se assim acontecesse seus dias estariam contados. Viviam no mesmo planeta, e no mesmo espaço que nós, porém é como se estivessem em dimensões diferentes, paralelas.
Tudo isso fazia daquele homem um ser efetivamente estranho, cult para os mais novos ou louco para os mais velhos. Mas uma coisa é certa, por todas essas décadas nunca ninguém havia ouvido falar de uma maldade se quer produzida por ele. Um Homem incapaz de machucar uma formiga, diziam.
Nesta noite, saiu por volta das 20 horas, impecável, não usava perfume, pois o cheiro forte e artificial inibia as criaturas, pegou um táxi e saiu como quem vai da beira mar para o interior da cidade, uma cidade aonde já não se encontram ruas e ruelas silenciosas, uma comunidade que produz uma enormidade de barulhos compatível à de lixo. Uma cidade aonde os anjos já não adormecem no peitoril dos sobrados, um lugar aonde as pessoas falam alto, muito alto, gritam muito, berram... Uma cidade onde as pessoas não sabem mais o que dizem e porque dizem.
As criaturas da noite silenciaram ao amanhecer, acordei na alvorada e fui para o portão de casa para ver meu velho vizinho chegar. Oferecer-lhe uma xícara de chá quente e pedir-lhe para que me narrasse as aventuras sonoras dos micro tons desta noite.
Ele não desceu do táxi, não subiu a rua com seu terno negro e seu passo largo, não olhou-me com aqueles olhos de mar.
Acho que esta noite ele reencontrou seu grande amigo Walter Smetak.
Você está ouvindo?

Roger Ribeiro
14 de abril 2010.

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