sexta-feira, 30 de abril de 2010

33 1/3 rpm



Este texto foi feito para Patrícia

Ficava melancólica, triste mesmo, todo dia ao final da tarde. Dizia que eram os tons, ao que eu rebatia afirmando serem os dons. Sempre ganhava um sorrisinho com isso, mas era apenas de boca, os olhos não enganavam, a melancolia dominava aquela menina de forma tão profunda que só poderia ser efêmera. Durava o tempo necessário do azul claro do céu avermelhar, arroxear e por fim tornar-se breu, aí... Adeus melancolia! Já era hora de pensar nas luzes, no brilho que se deitaria sobre a cidade morna em uma noite de outono.

Gostava de me levar para passear, se íamos ao teatro, ao cinema ou à casa de um amigo qualquer, sempre queria fazer o caminho mais longo, gostava de ver, de olhar e, principalmente, sentir o vento salgado bater no seu rosto, dizia que um dia viraria uma estátua de sal. Hoje, quando vejo estes artistas de rua fazendo aquelas performances de estátuas prateadas, douradas, ou seja lá como for, sempre me pergunto se ela virou uma de sal.

Viajamos muito juntos, tínhamos um jeito de gostar muito semelhante e isso nos atraía de maneira intensa, adorávamos as montanhas, as cachoeiras, os rios e ficávamos dias nas serras invertendo a realidade, inventando a nossa própria visão que nos permitia olhar, entre os nossos compridos cabelos, uma verdade que hoje pareceria infantil. Tudo são épocas, cada qual com seus moinhos, porém tenho de revelar, estive um dia em um local onde o céu era verde e a terra e sua vegetação eram azuis. Por favor, não ria.

Hoje, passando por uma antiga loja de discos, tão antiga que seus produtos a venda ainda se compõem de vinis, sim! Vinis, LPs, Compactos simples e duplos, tudo feito para girar em 33 1/3, dei-me conta de que o mundo já girou nesta velocidade. Engraçado pensar isso, hoje os Compact Discs (CDs) giram a uma velocidade estonteante, mas o que sai deles não possui a fúria que saía dos velhos 33 1/3, porém isso não tem a menor importância, foi só porque eu lembrei da guitarra de Alvin Lee & Ten Years After.

Mas, retomando a prosa, parei na loja dos discos e avistei de longe a capa de um álbum que freqüentava muito as nossas vitrolas e, assim como ela, há tempos eu não ouvia e nem via: Ivinho ao Vivo no Montreux Internacional Jazz Festival, um LP de Ivson Wanderley, registrado nos idos 1979. Entrei, comprei e não permiti que o dono da loja colocasse no saco quadrado preto fosco, não... Eu queria sair com ele debaixo do braço para que todos vissem o que eu tinha, o que eu ouvia, afinal era assim que arranjávamos as nossas namoradinhas!

Com o Ivinho debaixo do braço, continuei minha peregrinação pelo centro da cidade em direção ao trabalho. Era uma manhã quente, passei por bancas de rua improvisadas que vendiam peixes frescos, olhei para um Vermelho Ariacó fresquinho e fiquei meio frustrado, pois já o via nadando no dendê na minha panela de barro, mas tinha ainda um longo dia de trabalho pela frente e, tenho certeza, meus colegas não ficariam muito satisfeitos com aquela presença por muito tempo. Foi uma pena.

Tudo enfim parecia que seria igual à ontem, ou a antes de ontem, ou a qualquer dia desses mornos de outono, mas as aparências, muitas vezes, enganam. No caminho de sempre havia algo novo, era um tumulto, uma roda de pessoas que se espremiam para acompanhar algo que acontecia no meio daquele círculo humano. Fiquei curioso, afinal era algo novo no meio de um caminho que eu fazia de segunda a sábado, invariavelmente, há anos.

A ordem estava quebrada, as pessoas faziam exclamações de surpresa, depois se calavam atentas para novamente externarem um “ÔH!”, em uníssono, um verdadeiro Cantus Planus Gregoriano.

Olhei para o meu relógio e constatei que não daria tempo, era tudo cronometrado, se parasse me atrasaria e, se me atrasasse, quebraria uma tradição que já durava mais de década: jamais me atrasei.

Fiquei em uma situação embaraçosa, minhas pernas caminhavam para frente, mas meu cérebro contornava, retornava, atravessava para o lado oposto, para o lado de lá. Lembrei que jamais havia feito o caminho pelo lado de lá, não o conhecia, éramos estranhos um ao outro, fiquei frio, em plena manhã quente de outono, tive a certeza de que se atravessasse... Se irrompesse aquela divisória invisível, estaria para sempre perdido.

Onde estaria? Como regressaria? Se eu estava indo de lá para cá, só poderia ir por esse lado, pois aquele outro lado, apesar de paralelo, certamente conduziu de algum lugar desconhecido para qualquer outro lugar longe, muito longe, de onde eu tinha de ir. Onde estaria eu?

O temor me fez afogar no meu próprio suor, as pernas não mais iam, elas teimavam em vir, tropeçavam uma na outra, que absurdo, como minha mente podia ter a ousadia de mandar em minhas pernas?!

Senti na vertigem que alguém puxou do meu braço o disco do Ivinho. Isso já era demais saí feito louco a uma velocidade de 33 1/3, no rastro do LP, a vertigem me fez perder o equilíbrio, segurei em algo, respirei fundo e ouvi a melodia entrar por todos os meus poros:

I look at you all see the love there that's sleeping
While my guitar gently weeps
I look at the floor and I see it needs sweeping
Still my guitar gently weeps
I don't know why nobody told you how to unfold your love
I don't know how someone controlled you
They bought and sold you
I look at the world and I notice it's turning
While my guitar gently weeps
With every mistake we must surely be learning
Still my guitar gently weeps
I don’t know how you were diverted
You were perverted too
I don’t know how you were inverted
No one alerted you
I look at you all see the love there that's sleeping
While my guitar gently weeps
Look at you all...
Still my guitar gently weeps *

Senti meus olhos arderem, a boca secar, era como se tivesse acabado de sair do mar... O disco do Ivinho estava sobre o meu colo, o brilho ao redor era de uma intensidade tal que tornava impossível a nitidez plena, o real não passava de vultos brilhantes. Tive a sensação de que entre a floresta de brilho que estava, ter avistado um vulto especial, sorrindo para mim, um vulto de sal girando a 33 1/3.

Roger Ribeiro.
29 de abril de 2010.

* While My Guitar Gently Weeps
George Harrison

3 comentários:

  1. ADOREI A 33 1L3
    ALVIN LEE VOU PRA CASA DE HELICOPTERO

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  2. Realmente foi uma viagem, reví e revivi momentos mágicos lendo o texto, saudades dos vinis e de tudo que os rodeava.Valeu, boa semana para você.Um beijo grande.

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  3. Maravilha, um pouco de ironia, com um pouco de melancolia e um pouco de fantasia ... ADOREI
    Ah, final de tarde para mim é o ó... fico malzona tbm, mas quando as luzes acendem ou a lua vem iluminando tudo, passa.
    Beijossss

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