terça-feira, 18 de maio de 2010

De onde raios viestes?


Apreciava leituras soturnas, vivia de sebo em sebo em busca das letras grafadas com asco, dizia que estes livros eram sempre encontrados em excelente estado de conservação, mesmo que fossem edições antigas, de vinte, trinta anos ou mais


Eram conservados por que ninguém conseguia lê-los, teorizava. – “Repare! Mostrava a quem lhe desse ouvido, veja como até a página 45 há marcas de dedos, de manuseio, porém a partir daí... Nada! Veja páginas virgens, nunca dantes vistas, lidas, acarinhadas”.


Sentava-se por volta das 16 horas em um dos bancos que ficam em frente ao farol da Barra, dizia que ali era o melhor lugar da cidade do Salvador, mas só a partir das 16 horas quando a sombra começava a se projetar sobre o gramado e o vento nordeste fresco, vindo do mar, sopra baixo deixando sua alma presa a você em ângulo reto, como um lençol preso ao varal em dia de vendaval.

Neste espaço, portanto, entre senhores que sentam para olhar as meninas passarem com seus trajes de corrida, colegiais que escapuliram dos muros das escolas para namorar ao por do sol, vendedores de bugigangas fedidos, desgrenhados, loucos para vender um colarzinho, uma fitinha para comprar algo que os entorpeçam, enfim em meio a uma “fauna” urbana doentia e instigante, ele sentava-se com no mínimo dois ou três amigos, como chamava seus livros, e retirava a âncora de sua caravela!

Deixou-se invadir pelas características do olhar sobre a obra. Sobre o lábio superior, um grosso bigode em total contraste com a tez clara cera, adornada por uma cabeleira rala e lisa, cor de cenoura, completamente irregular que combinava com a imperfeição linear do fino aro do óculos dourado de vidros grossos. Era realmente uma figura um tanto quanto exótica para uma cidade litorânea e tropical.

Um dia, o vi entretido com “A Hora da Estrela” da Clarice Lispector, percebi ao longe que algo o incomodava na leitura, parava repetidas vezes, balançava a cabeça, olhava para cima, levantou reclamou com a baiana de que o cheiro da fritura do acarajé o desconcentrava, ouviu um olhar de desprezo dela e nada mais. Sentou-se novamente e novamente entregou-se a Clarice de tal forma que passou a lê-la como se fosse um locutor de rádio-relógio.

Ficava meio agoniado, pois sabia que seu tempo era curto, afinal o local é mal iluminado, sendo assim quando escurece... Já não há mais possibilidade de leitura, os seres voltam às suas capas duras.


Escreveu várias vezes para os jornais, telefonou para as rádios e televisões pedindo solução para a questão da precariedade da iluminação, mas nunca obteve solução dos poderes constituídos. Também nunca teve esta esperança, afinal seu niilismo era afiado o suficiente para entender a mente e as ações do Ser Humano, principalmente aqueles que se julgam poderosos. A eles, a lâmina fria das letras de Schopenhauer.


Mas não julguem que sou um desocupado, que fico olhando a vida dos outros, não é isso, é que tenho uma bússola nata nos olhos que se atraem a seres diferenciados. Gosto de ver como se estabelecem e encontram espaço para serem assim em um mundinho tão limitado, tão previsível. Acho que busco através destes seres, alimentar em mim, a idéia de que é possível construir um universo paralelo sem que as pessoas fiquem o tempo todo dizendo que você é isso ou aquilo por não conseguir divertir-se com as carências alheias.

Meu amigo “nietzscheriano” me instiga de que algo pode e deve acontecer. Não se contentava em ser uma Macabéia, também não possuía a intenção de ser um astro, pelo contrário, divertia-se em ser apenas um corpo para dar vida a seres incríveis como “O Homem que Sabia Javanês”, ou Dr. Simão Bacamarte, ou Josef K, Brás Cubas, enfim milhares de Policarpos, centenas de Quaresmas espalhados entre o branco do papel e o negro da tinta, mesmo que seja nos confins das prisões siberianas, ou no quarto fétido ao fundo da loja de antiguidades.

Hoje, vou anotar a data para nunca esquecer, ele estava diferente, formal, sustentava em seu corpo esquelético um elegantíssimo terno escuro completo, usava um chapéu de feltro, cinza escuro, o sapato brilhava, o cabelo cuidadosamente penteado, só o óculos permanecia torto formando um ângulo de 45 graus com a linha dos olhos. Era outra pessoa, o que será que aconteceu? Ou o que será que iria acontecer?

Eram 16 horas em ponto, ele ergueu-se, pegou o pacote que estava sobre o banco, desenrolou cuidadosamente, ergueu o livro de capa negra à altura dos olhos e brandiu:

- No princípio criou Deus o céu e a Terra,
E a Terra estava vasta e vazia e havia trevas sobre a face das águas,
E disse Deus: haja luz; e houve luz.
E viu Deus que a luz era boa;
E fez Deus a separação entre a Luz e as trevas...

Sorri, ele enfim havia superado seus mestres. Hoje a noite se fez às 16 horas!


Roger Ribeiro

18 de maio 2010.

2 comentários:

  1. Terpsychore Quirino24 de maio de 2010 às 13:07

    Li, e reli, sabe aquele texto que lhe envolve e você consegue visualizar o cenário com nitidez e fica com a mente aguçada formalizando qual é a cara desse sujeito? Pois é, vou acabar sendo cansativa mas seus textos são bons, siga em frente MESMO. Um beijo grande.

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