sexta-feira, 28 de maio de 2010

A GAROA TURVA




Para que minha amiga fique bem


- Venha para dentro, saia deste sereno, menina!

Ela apenas balançava a cabeça adornada com seus cabelos cor de ouro barroco. Tremia muito e os olhos estavam brasis. Suponho que estivesse febril. Na verdade, debruçado de minha janela, observava a voz e a menina. O que será que ela tinha? Era tudo muito rápido, as mudanças eram bruscas, por vezes parecia uma criança frágil, quase um bebê indefeso, suplicando que algum colo lhe aquecesse, logo em seguida era um rompante vulcânico, tornava-se enorme, engolia a própria sombra que se projetava a partir da luz do poste.

- Não se maltrate, seja uma boa menina venha para dentro, olha pegue esta toalha e tome um banho morno, você se sentirá bem melhor.

Novamente apenas os cabelos sacudiam em uma extensa negativa à voz cansada que quase escorria pela sarjeta junto a água da fina e fria garoa que se impunha entre o solo e a nuvem. Não a via cair, ela flutuava, estava estática no ar abraçando a tudo que fosse sólido e estivesse no espaço delineado por aquelas minúsculas gotas d’água.

Coloquei a mão para fora da janela para sentir aquele véu abraçá-la, abri um buraco na garoa que logo se ajeitou anatomicamente ao meu braço, resfriou-lhe e por segundos senti que havia dois sentidos em um só corpo, a úmida e fria pele, carne e líquidos do meu braço e o seco e morno resto do meu corpo.

- NÃO, não faça isso!

O grito da voz me fez voltar ao mundo real. Assustei-me e também gritei: PARE! Não faça isso.

Seguiram-se alguns instantes e a perna dela ficou no ar, não tocou o asfalto, um pé firme na ponta do meio-fio, o outro suspenso. O carro passou muito rápido, creio que ele nem viu a perna suspensa sobre o início do asfalto. Os pneus ergueram água o suficiente para encharcar-lhe o vestido. Fiquei surpreso, pois a garoa não molhava o vestido, as gotas se sobrepunham intactas sobre ele, não se partiam, não viravam água, permaneciam gotas.

Porém, a levantada pelo pneu não, esta formou uma parede sólida de água que se projetou violentamente sobre o vestido, este por sua vez que rendia a ela uma levitação, passou a sugá-la, colou no seu corpo e passou a pingar pela barra intensamente, e quanto mais pingava mais ela se esvaía, não era a água da poça sobre ela que pingava, era ela.

Vi-me aterrorizado, presenciava de minha janela algo fora, completamente fora de minha capacidade de entendimento. Ela perdia massa, peso, volume, cor! O chão a sua volta parecia ter enferrujado, ela se ia descendo a calçada, desfeita, e nada fazia.

- Não, Não, por favor não se permita isso...

“Não se permita isso”, esta frase dita a ela entrou por meus ouvidos como se fosse para mim. Abri os olhos com tamanha energia que lentamente, ela lá em baixo, perto ao poste que esticava a um sem fim sua sombra, que seguia o mesmo sentido do seu corpo que se ia, esvaziando o vestido branco, foi virando a cabeça em minha direção, lentamente ergueu a cabeça, retirou os longos fios de cabelo da fronte e mirou com seus olhos brasis o brilho alvo dos meus olhos.

De repente percebeu que não estava só, de repente percebi que também não estava só. Éramos eu, sobre a janela, ela sobre a bruma d’água e a voz deslocando o que havia de mais sólido naquele momento; o ar.

- O que você vê? Perguntou-me ela com uma fio de voz, mas que chegou a mim perfeitamente como se ela estivesse a apenas centímetros de mim.

- Porque me observas? O que queres descobrir? Não sabes que não se deve ater-se aos eclipses?

Percebi um contra movimento na calçada, as formas começavam a se reagrupar, subia-lhe pelos pés finos e alvos e re-preenchiam o vestido, os cabelos antes lânguidos agora esvoaçavam, eram como tocha, iluminavam aquele corpo antes frágil, agora magro, porém firme como se fossem de pau-ferro, seu olhar já não era brasil, mas sim de um branco cristal, impossível de fitar.

Por um instante tudo parou, estacionou o tempo e o espaço, a voz ficou suspensa no ar, meu gesto não se completou, estancou no meio do caminho, a garoa estática não caía, nada... Por longos segundos não houve nada, apenas ela transformava-se em um oceano de átomos girando sobre si mesma como um grande rodamoinho, era um clarão inimaginável, a luz da irrealidade, o clarão da loucura, a beleza da insensatez!

Quando o brilho cessou e o mundo voltou ao seu movimento normal, estava eu e ela dançando no asfalto molhado como um mestre-sala e sua porta bandeira, rodopiando, loucos de tanta alegria, enquanto a voz cantava a pleno pulmão:

- Quem é você?
- Adivinha se gosta de mim
Hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim:
- Quem é você, diga logo...
- ...que eu quero saber o seu jogo
- ...que eu quero morrer no seu bloco...
- ...que eu quero me arder no seu fogo
- Eu sou seresteiro, poeta e cantor
- O meu tempo inteiro, só zombo do amor
- Eu tenho um pandeiro
- Só quero um violão
- Eu nado em dinheiro
- Não tenho um tostão...Fui porta-estandarte, não sei mais dançar
- Eu, modéstia à parte, nasci prá sambar
- Eu sou tão menina
- Meu tempo passou
- Eu sou colombina
- Eu sou pierrô
Mas é carnaval, não me diga mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar
Que hoje eu sou da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou
Seja você quem for, seja o que Deus quiser
Seja você quem for, seja o que Deus quiser.*

No meio da algazarra total percebi que no vestido branco dela, existiam minúsculas margaridinhas amarelas bordadas.

Roger Ribeiro
27 de maio de 2010.

*Noite dos Mascarados - Chico Buarque

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