sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Brilho na Linha Amarela




Dizia ele:

- Quando não houver o que dizer, fique calado. Apenas observe. Se ela passar por você, fique nublado, deixe chover, escorrer pelo cabelo, descer pela coluna até o calcanhar mal disfarçado.

- Não deixe jamais trovejar, relampejar então, nem pensar, não que haja necessidade de ser um ator de teatro, não! Mas a faca entre os dentes é sempre um prenúncio de pecado, de desafio mal tocado, de seresta desafinada, de cordel mal ritmado. Escute o que te digo não há nada pior do que um choro mal chorado.

Ele andava de um lado para o outro em frente ao Rei do Pernil, no Comércio, onde não por acaso eu estava encostado no balcão tomando um refresco de tamarindo, bem geladinho, para aliviar o corpo interior naquela tarde abafada.

Fiquei olhando fixamente para ele e apesar do seu aspecto físico de louco, não via loucura em suas palavras, simpatizava com elas, achava-as até mesmo sábias. Será que ele havia passado por essas coisas de que se referia? Notei que olhou para mim com uma certa afeição, acho que percebeu que eu o dava atenção, aliás acho que eu era o único ali naquele balcão que notava-lhe a presença. Com um gesto, me pediu um pouco do meu refresco, pedi ao balconista que lhe servisse um inteiro. Paguei o meu e o dele e saí, meio constrangido, me sentindo meio mal ao perceber que o dele havia sido servido em copo descartável.

Saí cabisbaixo refletindo sobre a condição humana, lembrei que li algo de um intelectual local que traduzia as obras de Freud do alemão diretamente para o português brasileiro e que, em determinado momento ele dizia que era lento na ação e que traduzia uma página por dia (seria em busca da exatidão? Pensei), ri com ele ao dar conta de que ele havia encontrado uma função para toda a vida. O que seria que ele me diria sobre copos de vidro e de plástico na psique de um ser humano?

Lamentei que minha louca amiga tradutora também não mais estivesse com um mínimo de contato comigo, pois ela certamente saberia me dizer algo sobre tradutores e pessoas que passam o dia na rua traduzindo frases vagas, olhares, andares, sons emitidos, soluços fingidos, alegrias tristes, sorrisos sem dentes de ilustres desconhecidos que passam pela rua, sem notar-lhe a presença, mas dele não escapando. Sua tradução é afiada, é como dizia aquela antiga canção do Belchior: é como “um canto torto que como faca, corta a carne de vocês”.

Mas a diferença entre o meu copo de vidro e o copo de plástico dele, continuava a me incomodar apesar de eu entender a posição do dono da casa do pernil, que temia perder sua clientela se vissem aquele homem em estado natural, sem sabonete, perfume, xampu, cremes, dentifrício, aparelho de barba, nada, bebendo o seu refresco no copo de vidro que depois seria usado pela secretária executiva com seu talleur acompanhado de seu sapato de salto alto e fino, ornando com o cabelo preso na parte superior da nuca.

Não tinha jeito, mesmo entendendo a posição de coisificação humana do dono do pernil e também dono do refresco, não achava que ele fosse dono da verdade, muito pelo contrário, continuava achando que não haveria nada de mais em servir o nosso psicólogo social com o copo de vidro, situação de incômodo, diga-se de passagem, minha, pois ele não demonstrou nada, muito pelo contrário, pegou o refresco que lhe dei e saiu feliz e fagueiro, mas, julgava eu, era só lavar o copo, como, aliás, era feito após qualquer um ter tomado o refresco.

Eu ainda achava mais, afinal, e disso tinha certeza, da minha boca saíam muito mais besteiras, bobagens, comentários chulos, rasteiros, palavras feias, descabidas do que da boca dele. Portanto meu copo era muito mais sujo do que o dele, essa certeza me confortou e me envergonhou ao mesmo tempo.

Segui meu caminho, subi o Plano Inclinado Gonçalves, ultrapassei a Praça da Sé, o Elevador Lacerda, olhei com dor o abandono do Palace Hotel na rua Chile e resolvi entrar no novo Cine Glauber Rocha, para olhar uns livros, mas, principalmente, para me refestelar no ar refrigerado, fugindo do calor intenso.

Fiquei no ar frio de dentro observando as pessoas que passavam no ar quente do lado de fora. De repente revi o meu psicólogo social novamente. Vinha caminhando lentamente e largando suas observações para que o vento as carregasse, do nada parou, virou de frente para mim abriu um imenso sorriso de poucos dentes o que acabou por me seduzir a sair do meu aquário de ar frio. Chegou mais perto de mim, pegou no meu ombro e disse:

- Um sorriso é tudo o que o homem necessita, lhe foi dado uma caixa cheia e renovável deles, mas ele com seus medos o guardam, como fazem com seus bens, trancam no cofre do peito. Têm vergonha de dizer que são felizes onde tantos sofrem. Uns bobos.

Sorri para ele e como mágica brotou na minha memória o sorriso mais lindo que já vi em minha vida, ele vinha iluminando a cidade sobre a linha amarela da pista de automóveis entre a Barra e a Ondina, no meio da multidão.

Concordei com ele, sim uma linda raça de bobos! A sorte é que os melhores fabricam música!

Roger Ribeiro
06 de maio de 2010.


Roger Ribeiro
06 de maio de 2010.

3 comentários:

  1. Quantos psicólogos sociais existem neste mundo carregando os verdadeiros valores dessa vida besta que levamos. Como somos medíocres!!!

    Bom, vamos tentar sempre sorrir aquele sorriso de minha bela amiga ...rsrsrsrs

    Beijo saudoso

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  2. Muito lúcido, real, sabe quando você desabrocha a sensibilidade? Sentí você assim, belo.
    Um beijo grande.

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  3. adoro !!!!!! vc acredita que me emocionei ?

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