terça-feira, 2 de junho de 2009

Entre o céu e o Mar.




Para Seu Alexandrino e Dona Yara

Acordou cedo, muito cedo. Era necessário escovar a farta cabeleira de fios grossos e de uma tonalidade de breu profundo. Banho frio com sabonete de aroma de flor. Exalava um frescor! Era assim quase um oásis primaveril no denso e chuvoso outono.

Porém, como se adivinhasse, o céu chumbado, intermitentemente chuvoso, havia dado uma trégua e, ao sair do banho, percebeu pelas frestas da janela do quarto aonde dormia com sua cabocla avó, uma irradiante luminosidade. Era intensa demais para o horário, para a época do ano, para os dias que antecederam aquela manhã.

Não estranhou, aliás, sempre teve em si a sensação de que nada com ela acontecia à toa, não acreditava em acasos e levitava pela vida com a certeza de que seus caminhos estavam traçados. Não por acaso havia sobrevivido na infância a uma sequência de doenças que mais parecia um dicionário farmacológico. De uma simples gripe que evolui para pneumonia, passando pela meningite que levou até o pároco da vila a rezar-lhe uma missa, passando por febres oriundas de encontros com seres estranhos marítimos, até a última, há um ano atrás, quando permaneceu em coma por quinze dias e ninguém, da razão científica, pode explicar.

Sobre o corpo longilíneo, de ossos salientes e caprichosamente adornados por uma carne tenra, sustentada por feixes de músculos alongados, cobriu a pele morena com um leve vestido azul estampado de flores que variavam entre o amarelo, o vermelho e o violeta. Nos pés, que nunca haviam visto um salão, mas que acariciado pelo coral da barra-mar, onde colhia os mariscos e moluscos para as refeições, uma sandália de corda turquesa. A clara imagem de pés que sabem por onde andar.

Nos bolsos largos do vestido que lhe beiravam os joelhos, colocou o dinheiro necessário. Foi à cozinha onde sua mãe preparava o mingau de milho e tapioca que iria vender na praça, beijou-lhe a face, avisou que não iria comer nada, sorriu, abriu a porta que dava da cozinha ao quintal e, maravilhada, percebeu o azul intenso e profundo que fazia daquela fresca manhã um dia especial.

No caminho, passou na pousado Arco Iris, do amigo God e, com a intimidade de quem foi ninada naquele colo desde a nascença, abriu o portão e em um saco plástico que havia levado consigo, colheu duas mangas Carlotinhas que seriam saboreadas na barca durante a travessia. Não precisou pensar, pois sempre soube – podia haver mangas Carlotinhas em muitos lugares, porém nenhuma possuía a alegre doçura daquelas, sempre teve a certeza de que eram assim, pois se nutriam do sorriso de quem lhes cuidava.

Havia perdido a primeira barca. Sem problema, naquele dia não estava cruzando a baia a trabalho. Tinha alguns afazeres, isso é verdade: duas cartas-bilhetes para entregar a familiares de amigos, uma conta de caderneta para saldar, alguns orçamentos de peças a serem bordadas e, um pedido mais que especial de seu primo, que conquistara o primeiro trabalho, de apreçar um som que contivesse cd, rádio AM e FM e se possível também com toca-fitas, pois as possuía em abundância (herança do pai falecido).

Entrou na barca e pensando suspirou: “mais um sinal!”, embarcara na barca azul e branca, a sua preferida, a mesma que desde menina se agarrava nos pneus laterais no ancoradouro para largar-se alegremente ao passar pelo farol que ficava na barra de corais. Sentou-se na frente, no bico do barco, onde, por sinal os “barqueiros” não permitem que ninguém permaneça, a não ser alguns poucos, que tinham intimidade o suficiente para desprezarem os avisos escritos e também os chamados: “não pode viajar aí”.

Qual nada! A brisa de frente, secando os lábios, esvoaçando o cabelo, flamulando o leve tecido no corpo fresco, aquela sensação era indescritível!

Sacou de uma das Carlotinhas e ficou a fitar e questionar: “o que era mais azul o céu ou as águas da baia de Todos os Santos?” Olhava à frente com uma expectativa nervosa, lá estava a Capital, cidade grande onde tinha de se andar de ônibus, tudo era distante, cheia, barulhenta, excitante! Gostava de ficar tentando identificar os locais: “lá está o Elevador Lacerda, acima o Palácio, a igreja da Conceição” (se benzeu rápido). O rádio da barca a trouxe abruptamente de volta:

“Aconteceu / o que aconteceu
Foi melhor assim / estava por um fio
Estava por um triz / estava já no fim
Todo mundo via / que acontecia
Pois aconteceu / era o que devia
Quando o descaminho / acha o seu desvio
Tudo se alivia / foi melhor assim
Quando dei por mim / já estava aqui e agora”.*

A barca aproximou-se do Forte São Marcelo, o Forte do Mar! Soltou o primeiro náutico apito. Anunciava que o povo da Ilha estava chegando!

Ela ergueu-se lentamente, sacudiu o vestido. Sob uma pedra deixou na madeira azul do barco o pouco dinheiro, as cartas-bilhetes, devidamente endereçadas, e a lista de afazeres. Deslizou suavemente da barca para o azul da baia.
Sabia ela, com sua abundante e negra cabeleira, que seu lugar não era nem lá, nem cá.
Seu lugar era entre estes mundos. Seu reino eram as águas de onde orientaria Todos os Santos.
Roger Ribeiro.
29 de maio de 2009.

* “Aconteceu” (Marisa Monte e Arnaldo Antunes).

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