segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Neve e Sertão!



Para minha amiga Yêdissima!


Dizia, sim! Dizia e não era só para mim não, dizia para quem quisesse ouvir! Não tinha mais idade para ficar temerosa de nada nem de ninguém. Havia rodado o mundo por três vezes, visto de tudo, acumulado sabedoria o suficiente para saber que não há nada pior do que a dúvida do não feito.

Naquele fim de tarde chovia. Nossa, como chovia! Caia água de todo o céu, não havia nem um pedacinho de onde, lá do alto, não emanasse água.

Calmamente andando, segurando no meu braço, ela falou:

- Ele sabe que a humanidade precisa se lavar.

Achei divertido aquele comentário e permiti-me um breve sorriso sobre o qual rapidamente ela comentou:

- Não tenha medo de sorrir da condição humana, ela é assim mesmo. Cultiva a felicidade, mas não consegue conviver com ela. Apossa-se de tudo e de todos sem saber que a única coisa que realmente possui é a si mesmo e, normalmente é a quem menos cuida, pois está sempre se agarrando ao exterior, às suas posses. Coitados iludidos, não percebem que estas não lhe pertencem.

Comentei que achava que estava muito cética naquele fim diluviano de tarde.

- A chuva é um deus que sempre nos traz melancolia, é o signo do recolhimento. É hora de sentar na poltrona do canto, junto à janela salpicada de água, tomar uma taça de vinho tinto bem encorpado e pensar nas perdas. Nunca conheci ninguém que tramasse uma ação vibrante em um dia de forte chuva, a não ser que já tivesse agendada uma reunião ou uma atividade antes da chuva mostrar-se por inteira.

- Você está com uma conversa típica do Jorge Mautner. Esta coisa de deus da chuva e do vento... Vocês são devotos dos mesmos signos do universo.

- Ora, mais é claro que sim, veja como ele não é um tolo qualquer! Você já viu ou ouviu por aí as pessoas comentando a poesia e a música dele? E seus discursos? Estes então... Pois, é o que te digo: são pessoas especiais. É na chuva meu filho, que você conhece verdadeiramente as pessoas.

Fiquei refletindo um bom tempo sobre essa frase: “é na chuva que se conhece verdadeiramente as pessoas”. Andando vagarosamente de braços dados com aquela senhora octogenária, percebi uma série de interpretações para essa frase. Lembrei também de uma série de pessoas que não escuto as pessoas nos transportes coletivos, nas filas de banco nos corredores das feiras livres comentarem sobre elas.

Em compensação lembrei-me de uma série de pessoas que são comentadas em todos os lugares e, de repente, essas pessoas me pareceram com cara de amendoim cozido, cerveja na praia, pastéis de feira. Dei risada dessa analogia e me senti meio preconceituoso, meio esnobe. Para fugir dessa sensação perguntei a minha velha amiga:

- você nunca se sentiu comum?

- Eu, nunca! Casei quatro vezes todas com homens lindos, cobiçados e ricos. Por isso, tive a oportunidade de viajar o mundo inteiro por três vezes e de todos os anos ir à Rússia(URSS, na época) e a Paris! Ah! Todos falam de Paris, mais são uns bobos, falam porque têm medo de serem julgados como ignorantes. Mas te digo: não há lugar no mundo que se compare a Rússia.
Ali sim, os seres humanos são enigmáticos, ninguém é inocente. Todos são culpados. Lembro que meu segundo marido era um bom homem, diplomata, um intelectual prestigiadíssimo, recebido em todos os palácios e todas as academias, mas não se sentia culpado. Não tinha a necessidade de sair na noite escondendo-se nas sombras, não temia os dedos em riste a lhe apontar. Por isso, por anos, coloquei sonífero em seu chá noturno e quando ele desabava, eu saia a desbravar aquele universo de neve, de olhares fugidios de cumplicidades terríveis. Ah! Vida, vida... Nunca me arrependi de nada, sempre dei o melhor de mim a todos ao meu redor, mas sempre vivi como os vestidos das ciganas, voando ao sabor do vento.

- Mas Paris não é o encanto que todos falam? Há pouco, li que o Chico Buarque quando quer se concentrar em um trabalho vai a Paris.

- Sim, é verdade, mas veja bem; o Chico é lindo, mas sua reflexão artística é floreal demais, até quando busca refletir sobre algo mais denso, não consegue passar do Arpoador. Ele é lindo, possui frescor, diverte, mas está longe, muito longe, da tensão humana que se encontra na Rússia, na Bulgária, na Sérvia, no Sertão brasileiro, nas pequenas vilas andinas. Sim meu jovem amigo, veja, por exemplo, o alemão Nietzsche foi para a Basiléia na Suíça, Freud na Áustria e Luiz Gonzaga no sertão. São exemplos de homens que mergulham na condição humana.

- Nietzsche, Freud e Gonzagão!? Assim já é demais minha querida amiga, é hora de pararmos e tomarmos um café. Já estou ficando louco.

- Então estamos no caminho certo!

- Por favor, dois cafés.

- O meu com conhaque!

Não resisti, olhei-a fixamente e desabamos em uma sonora gargalhada. Ela me deu um beijo estalado na boca e nada mais dissemos naquele chuvoso fim de tarde.

Roger Ribeiro.
31 de julho de 2009.


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