sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ela me falou algo sobre roupa




- Troquei o meu cobertor por uma capa para minha guitarra.
- Mas como assim? Você ficou louco?
- Não apenas não sinto frio, e minha guitarra necessitava de uma roupa digna!
- Não sei não, acho que você não fez uma boa ação.
- Olha bem minha querida, boas ações são coisas para Lobinhos, Escoteiros e Bandeirantes.
- Você me lembrou bem! Sabe, nunca mais vi uma alcatéia de lobinhos nem tampouco pessoas vestidas com aquelas fardas de escoteiros e bandeirantes. O que será que aconteceu? Será que ainda existem? Ou será que se extinguiram?
Lembro bem que quando eu era menina, sempre aos domingos pela manhã os via em fila, cantando. O primeiro sempre carregando a flâmula que identificava o grupo. Isso era a cara do domingo. Nunca mais os vi.
- Creio que foram superados pelas ONGs.
- Será?
- Olha o que tem de ONG que cuida de pato, cachorro abandonado, gato manco, tartaruga em desova, periquitos de asa cortada. Tem ONG pra tudo baby, só não vê quem não quer.
- Pena, gostava daqueles grupos, “sempre alerta!”.
- Eu heim!? Você está parecendo disco do Roberto Carlos, sempre parece que já ouviu aquilo no disco anterior.
- Não seja insensível. Aliás, o que esperar de alguém que troca o próprio cobertor por uma “roupa nova” para a guitarra? Só pode ser um desumano mesmo.
- Por quê? Você acha que a “Brigitte Bardot” não merece um traje de gala? Sei não... Acho que você está é com inveja.
- Eu não, nem ligo. Só fico pensando quando formos acampar novamente, como será sem o Bob.
- Viu! É sempre assim, você só pensa em você. Se eu tivesse trocado o “Bob Dylan” por aquele vestido curtinho, ou aquele colar de contas coloridas, ou ainda aquela bota prá você, certamente você não diria nada, mas como foi uma roupinha nova prá “Brigitte”... Aí você faz esse drama todo.
- Você quer me comparar a essa guitarra de décima mão? Toda estropiada, empenada e desafinada? Eu bem que vinha desconfiando de sua sanidade mental, mas agora você passou de todos os limites. E te digo mais, esse universo é pequeno demais para mim e “Brigitte”, portanto escolha já: ou eu, euzinha ou ela. E ponto final.
- Se fosse você eu não faria isso!
- O quê? Pois está decidido. Nunca mais me procure. Adeus fique com essa guitarra velha... E tem mais, eu nunca te disse, mas agora vou dizer.
- Lá vem... Se nunca disse foi por covardia, nunca te censurei de dizer nada.
- Pois saiba que você é o pior guitarrista que já ouvi tocar.
- Pô! Agora você pegou pesado, O PIOR?

Dei as costas e fui embora, eu e “Brigitte”. Parei algumas quadras adiante, olhei para ela em sua roupinha nova e com os “olhos rasos d’água, o coração cheio de mágoas” perguntei: “Brigitte”, você que já passou por tantas mãos, eu fui o pior? Ela não respondeu.

Sentei no banco da Praça do Relógio de São Pedro e apoiei o queixo no braço daquela única criatura no mundo que me entendia. Ela foi cruel demais, não havia necessidade, ela podia ter me dito apenas adeus e ido embora, não precisava magoar o meu coração desse jeito. Será que eu toco pior do que aquele oxigenados do “Pagodão de Dona Maria”? Não! Não é possível, aí já é demais. Ele não sabe nem afinar as cordas! Da última vez, antes da “Caveira com Osteoporose” entrar em cena, eles iriam fazer a abertura (sim, acredite, é um desses eventos que acontecem nessa cidade que tem como mote a diversidade, sabe como é?) pois, era a nossa estréia e botaram pra abrir a noite uma banda de pagode.

Como uma banda de Rock pode entrar pra tocar depois do “Pagodão”? Bem, mas isso não vem ao caso, o certo é que quem afinou a guitarra do oxigenado fui eu! Então não é possível que eu seja pior que ele!

- Oi, você sabe tocar aquela do Paulo Diniz? Ô moço, tá morto? Tá me ouvindo falar com você não? Ô, fiu! Num tá escutando não?

Senti uma mão no meu ombro me chacoalhando, retornei à realidade assustado. Havia um homem, com um paletó preto todo roto, uma gravata azul com uma clave de sol amarela bordada, imunda, uma barba de pelo menos uns três anos e uma bota preta que começava a dar sinais de exaustão.

- Ôxi menino, tô te perguntando se sabe aquela do Paulo Diniz?
- Desculpe, não ouvi que estavas falando comigo.
- Perdoado, mas agora já sabe e, sendo assim, dá prá me responder?
- Já sei você quer aquela de “voltar prá Bahia” né?
- Que! Você está louco. Se fosse essa eu mesmo tocava e cantava, olha (tirou algo do bolso do velho paletó), veja tenho essa harmônica desde os doze anos de idade foi meu pai que me deu. (solou um trecho da melodia). Mas não estou aqui para tocar pra você...
- Sim e qual é a música que você quer?
- “Viola no Paletó”.
- Como? Viola aonde?
- E... Já vi tudo, você está guardando a guitarra de alguém não é mesmo? Afinal não existe guitarrista no mundo que não conheça “Viola no Paletó”. Te digo mais, sabe quem tocou ela? Hendrix meu filho! Ele mesmo, no festival de Monterrey em 1968. Você nem tinha nascido, tá achando pouco? Pois o Clapton...
- Quem?
- Clapton, Eric Clapton, mas que diacho de guitarrista é você? Vai dizer que nunca ouviu falar nele?
- Claro que ouvi.
- Pois ele mesmo, eu estava lá, foi no Festival da Penha, ali na Ilha, em 1976, ele sozinho na guitarra tocando o quê? Adivinhe...
- Sei lá! Nunca soube que Clapton tocou aqui.
- Santa ignorância, essa juventude... Pois ele tocou e solou longamente o clássico “Viola no Paletó”.
- hum...
- Já vi tudo, você não sabe não é mesmo? É assim, ouve só: lá, lalá riii lááá! Sacou?
- Não.
- Da cá essa guitarra e aprenda.
- Mas é preciso um amplificador e uma caixa prá guitarra soar.
- Você não sabe de nada, escuta:

Minha gente eu vim de longe
Estou aqui cansado e só
Tenho muito pra contar
Do que vi, por onde andei
Das estradas dos caminhos
Dos lugares que passei
Tô chegando e trouxe pouco
Porque muito eu não ganhei
Trouxe forças pra lutar
Por um bem que já se fez
Trouxe uma vontade imensa
De ficar de uma vez
Trouxe um canto e um desencanto
E um sorriso que consola
Muito amor dentro do peito
Pouca coisa na sacola
Trouxe o cansaço da vinda
De quem anda a pé e só
E uma viola sofrida
Pendurada no paletó.*

Aprendeu?
- Olha... (pensei melhor, o cara é louco, melhor não contrariar) Claro, é fácil.
- Ótimo, então vamos.
- Como assim? Vamos aonde?
- Na casa dela, claro.
- Dela quem?
- Primeiro vamos passar na casa de uma moça linda, advogada sabe? Ela processou e condenou meu coração, a malvada, perversa! É pra ela que vou cantar essa canção. Depois, bem... Depois você vai tocar para a moça que está lá na Praça Castro Alves triste que nem Lua Minguante, com os olhos refletindo você, assim como os seus estão refletindo ela.
Vamos! Não há tempo a perder, precisamos fazer tudo isso antes que a Terra dê mais uma volta sobre si.

Roger Ribeiro
22 de outubro de 2009

* Viola no Paletó - Paulo Diniz

2 comentários:

  1. Nosso travesseiro virou guitarra? Qual foi a mágica?


    Sandra

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  2. Claro, afinal, "toco minha guitarra quando ninguém me toca!"

    bj

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