quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tio



Saco! Você precisava me enviar essa mensagem às seis e meia da manhã? Eu tenho certeza de que você fez de propósito, claro! Sua idéia era acabar com o meu dia, minha semana. Talvez a sua maldade seja tamanha que seu intuito seja acabar com meu mês, meu ano. Ora! Por que você não diz logo que seu maior desejo é acabar com a minha existência, riscar, apagar de uma vez por todas meus passos pelo planeta, desvirar minha ampulheta, apagar dos anais do universo, meu ser, nem que seja necessária borracha bicolor para lápis e caneta!

Saí de casa assim, digamos, meio nervoso, os dentes travados. A impressão que tinha era de que babava feito cachorro louco. Bati a porta com a chave dentro, claro! Tinha de ser assim, o dia estava azul que nem vestido de noiva apaixonada e meu ser, meu eu, meu íntimo intransferível, amarelo, pior, amarelinho como gemada para tuberculoso, psicótico crônico, ou quem sabe algo aterrador como sorriso de comentarista esportivo da Rede Globo. Vixi... Eu heim! Xô!

Entrei no automóvel e antes de dar a partida fui escolher um cd para aliviar o dia. Algo calmo para quebrar a fervura ou algo pesado para deslocar o foco da questão? Fui passando um por um no porta cd: Gil, Marina, Ronei Jorge, Led Zeppelim III, Cascadura, Dead Kennedys, Sex Pistols. Mas ainda não era o que precisava ouvir naquela manhãzinha, insuportavelmente azulzinha como tudo que termina em inho/inha – amorzinho, benzinho, xodozinha, chatinha, inssuportavelzinha, fominha, soninho... Arc, gruff! Chega.
Achei, finalmente achei, era o último cd da pilha. “Úteros em Fúria”! Sim, meu querido amigo Maurão iria me resgatar naquela manhã.

Som “no talo”, automóvel ligado, freio-de-mão arriado, consegui enfim soltar o primeiro sorriso do dia ao pensar: ainda bem que aqui não tem Rua Augusta! Agora é cuidado, atenção, não deixe seus nervos desalinhados perturbar a concentração. São muitos carros circulando e ninguém tem nada a ver com a mensagem, impertinente, que recebestes. Claro! Falei bem alto para me convencer.

Um quarteirão, sim, acredite, não é paranóia! Um quarteirão e o pneu estava no chão, o metal da roda no asfalto fazia aquele som inigualável como quem diz: vais ter de sujar a mão.

Encostei, abri o porta-malas, peguei: triângulo, “macaco”, chave-de-roda, encontrei enfim aquela parafina perdida, toda derretida no carpete da mala, uma cena linda! Como se não bastasse descobri também que aquele iogurte que pensei haver pago e deixado no caixa do supermercado, também ele residia, junto à parafina, na mala do “Demolidor”, meu possante automóvel.

Ao virar-me de volta para a rua, lá estava ele, claro, nesta hora eles sempre aparecem, surgem do nada, acho que brotam do asfalto ou da calçada, parece que sempre estiveram ali, mas você só os vê neste momento, olhou para mim e disparou:

- Furou o pneu tio?
- (Ai, dói nos ouvidos, tudo menos tio!) Nããããão, de jeito nenhum, o problema são os outros três que estão cheios de ar.
- Olha tio, né por nada não, mas esse outro aqui também tá bem ruinzinho, viu?
- (Ui, agora doeu demais, tio somado a inho, eu mereço) Não sou seu tio.
- Certo tio.
- NÃO SOU SEU TIO!
- Fica nervoso não tio, acontece são muitos buracos na rua, não tem pneu que agüente. Olha se o senhor quiser, eu troco. Depois o senhor dá um trocadinho...

Não costumo explorar o trabalho infantil, nem dar trocado para crianças para não incentivar a “indústria” da exploração de infantil, mas naquela, até então, tenebrosa manhã, tinha uma reunião importante por isso estava vestido que nem diretor de arte de agência de publicidade. Manja? Pois é.

- Tudo bem, você sabe trocar pneu?
- Claro, troco uns dez por dia aqui mesmo.

(será que ele põe pregos na rua? Afastei o pensamento, era sórdido demais).

- só tem uma coisa...
- sim, o que é?
- normalmente não tenho força para folgar os parafusos da roda.
- tudo bem, deixa que folgo. Enquanto isso, traga o “socorro” aqui para perto.
- (Lá fui eu folgar os parafusos) Pega também o “macaco” que deixei lá junto ao triângulo, e depois encaixa o “macaco” no lugar certo.
- Tio! Seu carro é complicado, não encontrei o encaixe para o “macaco” não.
- Tudo bem, me deixa ver isso aqui. Agora para de me chamar de tio, pelo amor de Deus.
- Tudo bem tio.

(Ai!) Ergui o carro, tirei a roda, encaixei o “socorro”, coloquei os parafusos, desci o “macaco”, apertei o parafuso, ficou uma beleza. Conferi o outro pneu, realmente estava meio baixo, mas dava pra chegar ao posto para calibrar. Meti a mão, imunda, no bolso, tirei a carteira e... A menor nota que tinha era de dez reais.

- Aí “meu sobrinho” (tentei recuperar o humor), vai ao bar ali e compra uma água sem gás pra mim.

Rapidamente ele foi e retornou com a garrafinha de água e o troco. Peguei um real e dei-lhe.

- Pô tio, abre a mão! Eu tô com fome, desde ontem não como nada e ainda tenho que levar uma comida pra casa, pois minha mãe tá doente e tenho mais três irmãos menores que estão há dois dias sem comer e bláblábláblá....
- tá, tá, tá chega. Pelo amor de Deus! Toma! (puxei a nota de cinco reais e dei-lhe.)

Entrei no carro, dei a partida e ainda tive tempo de ouvir.

- Valeu aí, Tio!

Mudei o disco, talvez algo mais calmo fosse melhor. Coloquei a Fernanda Takai tirando onda de Nara Leão. Respirei aliviado. Pensei: coitado do menino... Espera aí, quem tirou o “macaco”, o “socorro”, o triângulo de sinalização e a chave de roda da mala-do-carro fui eu, quem folgou os parafusos fui eu, quem tirou o pneu furado e colocou na “mala” também fui eu, quem botou o pneu socorro no lugar, colocou os parafusos apertou, subiu e desceu o “macaco’ também fui eu! Dei um real para ele, depois dei mais cinco, ou seja, aquele “pestinha” ganhou seis reais meus só para atravessar a rua e comprar uma água! Eu mereço.

Olhei para mim, conferi... Eu estava imundo, um lixo ambulante, minha roupa de publicitário havia virado de borracheiro. Eu cheirava mal, suava as bicas, era verdadeiramente um flagelo humano... E agora? O que fazer? No meio dessa agonia, o celular tocou. Deus! Deve ser do trabalho, estou atrasado e essa história de pneu furado é antiga... Encostei o carro para atender a chamada.

- Alô.
Do outro lado, uma voz toda meiga falou.
- Alô, benzinho... Olha, tô ligando pra pedir perdão por hoje cedo. Eu não queria dizer aquilo, você não é nada daquilo, você é um amor de pessoa, eu te amo muito... Perdoa-me, é que acordei na TPM, sabe como é, né?

- Tudo bem, beeenhêê! À noite a gente se fala.
- Bom dia pra você, até a noite!

Grrrrrrrrrrrrrrrrr! O que eu fiz de errado nesta vida meu Deus!
No som Fernanda Takai dá o golpe final:

“Ah, insensatez que você fez / coração mais sem cuidado / fez chorar de dor / o seu amor / um amor tão delicado...” *

Roger Ribeiro
02 de outubro 2009-10-08

* “Insensatez”- Tom Jobim / Vinícius de Morais

2 comentários:

  1. hehehehe... adorei Roginho!!!
    As mulheres têm essas coisas, o "nariz" que o diga ...
    E o tio foi ótimo. Só assim para eu rir nessa manhã de ressaca com trabalho
    bjss
    Romana

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  2. Se te fez sorrir... Então a tarefa foi realizada!!!
    Quanto à ressaca o problema foram as malditas batatinhas!!!!

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