segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sim, eu ouvi




Foi assim mesmo como estou te falando. Ela vinha firme e se espatifava na pedra. Voava uma espuma branca muito alto, mas muito alto mesmo! Era de uma beleza que não conseguiria nunca, por mais que tentasse fazer você ver.

Eu estava bem acima, na mureta de proteção, na minha frente um mato fechado, de um verde profundo que, pelo ângulo do meu olhar, se estendia até o azul claro do mar. Tudo parecia muito calmo, era um dia aberto de sol forte e ventos fracos, tudo indicava que, enfim, a harmonia reinava.

Engano. Do nada, ela vinha como uma montanha e sem medir as conseqüências se espatifava na rocha marinha. Era fúria pura. Só podia ser um sinal, não era possível que aquilo fosse à toa, não era acidental, era uma após a outra.

Por que você me olha desta forma? O que estou te dizendo é a pura verdade, fiquei paralisado frente aquela força, aquela coragem de se lançar daquela maneira e se espatifar em milhares de pedaços. Ali não era água e pedra, mas sim energia, o universo se repensando.

E você fica aí olhando para mim como se estivesse vendo um louco! Não quer compreender. Às vezes é necessário ter a coragem de se lançar de frente, de peito aberto se espatifar para, quem sabe, se reagrupar e renascer novamente. Não suporto mais seu sorriso débil, seu pequeno mundinho de escritório, sempre as mesmas futricas, as mesmas pessoas agindo sempre da mesma forma e você se julgando superior a tudo e a todos. Fulaninha disse isso, fulaninho não fez aquilo... E você? O que fez? O que faz?

Nada? Ta, já sei, no sábado você vai ao salão, depois vai visitar seus pais e almoçaremos nos dizendo que as contas estão cada dia mais altas, que já não sabemos mais o que fazer, que merecemos um aumento de salário, que o computador de sua sala é velho, lento, que, pelo menos, poderiam te dar uma máquina nova para trabalhar! Por fim, de barriga cheia, muito mais de ar de tanto reclamar do que de comida. Iremos dormir à tarde até a hora de tomarmos banho e irmos ao shopping comprar um presentinho para não sei quenzinho, filha de fulaninha que vai nascer, ou nasceu, ou já existe há tempos. Sei lá!

Só sei que à noite você vai querer assistir aquele filmezinho já deitada na cama, sem perfume, sem aquele vestidinho colorido de alcinha, sem batom, com o cabelo preso para não embaraçar, creme na perna, no braço, no rosto e, certamente dará o golpe final:
- Amanhã, o marido de Carlinha vai fazer um churrasco e nos convidou.

Eu já esperava algo assim, claro! Tem um ano que tento parar de comer carne e todo domingo tem um churrasco que o marido, o filho, o amante, o pai, ou seja lá quem, vai fazer e nós somos convidados. Pararei a leitura e farei a já esperada pergunta:

- Quem é Carlinha?
- Pô, você heim!? Carlinha lá do escritório, aquela que sempre vai com o mesmo vestido.
- Não sei quem é.
- Sabe sim, semana retrasada demos carona para ela. É aquela que mora perto do Farol de Itapoã.

Minha nossa! Pensarei sem verbalizar: moramos no Campo Grande, amanhã é domingo, pelo visto fará sol e teremos de atravessar a cidade naquele trânsito infernal, suando feito beduíno para encontrar o escritório dela, de bermuda e sandália. A mesma coisa, as mesmas pessoas que ela vê de segunda a sexta, apenas piorado, pois estarão acompanhados dos mesmos maridos ou esposas, namorados ou namoradas, inclusive eu, contando as mesmas histórias como no dia em que ficaram presos, pois o contínuo perdeu a chave e a porta fica trancada por causa de assaltos. Vai ser emocionante.

E você continua olhando-me com esse sorrisinho no rosto como quem pergunta se está tudo bem comigo. Sim, é claro que está tudo legal comigo. Apenas estou tentando lhe dizer que por trás daquela calmaria que se fazia hoje, havia algo em fúria. Ninguém nunca imaginaria o que se passava, era algo que vinha inexplicavelmente, mas vinha. E quanto mais ela se lançava contra a rocha, mais o verde das largas folhas se agitavam e se tornavam mais verdes, sempre mais verdes e mais vibrantes!

Era como se elas também estivessem encantadas com a beleza daquela força. Eu sentia que algo me atravessava o peito, sentia na boca o sal daquela espuma branca no ar, sentia que aquelas largas folhas verdes se enraizavam nas minhas pernas. Estava paralisado, por mais que quisesse, não conseguia me movimentar. Algo se apossou de mim e eu nada podia frente a isso.

Se você um dia viver o que vivi, vai entender. Mas, para isso, você vai ter que permitir que o verde do mato se enlace nos seus finos e brancos pés, que o sal das águas do mar resseque seus lábios vermelhos sem batom, que a leve brisa tome a forma de uma lança e atravesse seu peito nú. Que uma força em fúria domine sua mente e dirija o seu olhar para algo que você nunca viu, nunca pensou poder existir. Você perderá completamente o domínio sobre você e, quando menos perceber, estará nos braços do universo dançando uma música que ninguém nunca tocou, cantou, criou.

Apenas você sentirá que seu sangue vazou dos seus poros, suas células se desconectaram uma das outras, você se desmaterializou por completo, lançou-se com toda a fúria ao encontro de algo muito maior. Você se espatifou em milhões de pequenas partículas fluorescente.

Sim, é por isso que estou aqui impassível, tranqüilo e terno, a um segundo apenas de me virar de costas e sair sem te dizer absolutamente nada, após você, temerosa, com olhar aflito, me dizer que não me quer mais.

Roger Ribeiro.
16 de outubro de 2009

4 comentários:

  1. Li uma frase não lembro de quem, mas que gosto muito que diz assim. "O caos interno é filho do sim consentido ao externo".

    Meu caos interno se alimenta do que me permito.

    Mais um vez Roginho, adorei o texto. Aliás, esse em especial.

    Beijão para vc

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  2. Roger ...
    O Comentário aí de cima foi meu ... coloquei anônimo sem querer...rsrsrs

    bjss

    Romana

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  3. Fiz um comentário mas não saiu!!!

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  4. Romana,
    o Kaos é apenas o momento em que você abre os olhos e diz bom dia!
    "(...) todos sabem, o coração tem morada certa, fica bem ao lado esquerdo do peito. Porém em mim a anatomia ficou louca, pois sou todo coração!"

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