sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Quem quer saber o quê?



- Então está combinado. Encontraremo-nos na Praça Tereza Batista, no momento em que Jards Macalé cantar a segunda música do show, você, de camisa branca, se posicionará bem em frente à mesa de som. Não tente adivinhar quem sou. Eu me aproximarei de você.

- Você estará com o doc...

- Claro. Não se preocupe levarei todos os documentos que comprovam a verdade.

- Está bem, estarei lá sem falta.

- Não se esqueça de ir de camisa branca para que eu possa saber quem é você.

Clic. O telefone foi desligado, era uma ligação de aparelho público para que o número não fosse identificado. Tudo se passava com absoluto sigilo. A situação era grave, exigia cuidado.

A negociação não envolvia dinheiro, não era uma chantagem, nem próximo a isso, aliás, muito pelo contrário. O que iria se presenciar era na verdade uma ação cidadã da mais alta estirpe. Você então se pergunta para que tanto sigilo? Tantos subterfúgios e cuidados? Ora meu querido, a verdade nem sempre é saudável para todos e por isso pode, muitas vezes, custar bem caro.

Era um belo fim de tarde e uma moça, alta, devia ter por volta de um metro e oitenta, com cabelos muito lisos e negros que lhe caiam até o meio das costas, postava-se debruçada na balaustrada da praia do Porto da Barra a observar aquela “bola de fogo vermelha” que se deitava por detrás da Ilha de Itaparica. Soprava uma brisa fresca e as pessoas passavam aos grupos falando alto e rindo, outras se abraçavam e, aproveitando daquele momento quase místico, faziam juras de amor. Ela estava visivelmente tocada, emocionada com toda aquela áurea de paz e felicidade. Afinal havia perdido a sua paz há algum tempo, isso se percebia pelo opaco dos seus olhos que um dia, certamente, deviam ter brilhado como diamantes.

Permitiu-se ficar, o que era muito raro. Havia tornado-se extremamente exigente consigo mesma, tinha de estar sempre em atividade, não se permitia ao prazer, ao lazer, nada! Se não estivesse trabalhando, estava estudando ou planejando novos trabalhos. Creio que resolveu ocupar-se desta forma para evitar os seus próprios pensamentos, fugia de sua verdade, afinal nem sempre a verdade se faz necessária e saudável.

O tempo passou e ela nem sentiu, também não viu que aquele rapaz que lhe perguntou as horas, na verdade estava, a tempo, procurando uma forma de se aproximar. Também não percebeu que um par de seus brincos havia caído de sua orelha e se alojado caprichosamente no espaço vago entre a pedra portuguesa branca e a preta. Não percebeu, na verdade, nada. Também não queria perceber. Há anos não se permitia vagar, deixar os seus olhos guiar os seus pensamentos, fazia tempo que não namorava a si mesma!

Olhou o relógio e viu que já estava quase atrasada. Virou-se e atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus. O brinco de pedra escarlate permaneceu a embelezar a calçada que agora já não mais era preta e branca, mas sim preta, branca e escarlate, isso, óbvio, para bons observadores. Pegou o coletivo Praça da Sé, sentou-se e, novamente deixou-se absorver pela paisagem em movimento.

Ficou na verdade brincado de achar que ela estava parada, o que era verdade, afinal era o ônibus que estava em movimento, mas fez de conta que estava sentada em algo estático e que as coisas é que estavam em movimento - o prédio, a casa, o poste, o outdoor, os seres humanos, a academia, o asfalto - tudo correndo na mesma direção. Ficou tonta, para piorar a situação lembrou-se de Pró Mercedes (na época pró era pró, não havia essa coisa chamar de tia), lá no curso primário explicando o, na época inexplicável, curso da rotação e translação da Terra, lembrou que também lá havia ficado enjoada.

Antes do Elevador Lacerda o ônibus parou e o cobrador anunciou o ponto final, fazia isso, pois esse percurso era muito freqüentado por turistas. Pensou: “porque será que esse ônibus diz que o destino é a Praça da Sé se estou tão longe desta? Na verdade estou no meio da Rua Chile! Passarei pelo Elevador, pela Câmara Legislativa Municipal, pelo Palácio da Aclamação, pela inconveniente arquitetura da Prefeitura, pelo Museu da Misericórdia e aí sim chegarei à dita Praça. Acho que na bandeira do ônibus deveria ter: Rua Chile. Seria mais honesto”.

Parou no carrinho de iguarias, à porta da Câmara Legislativa e comprou um milho e um saco de amendoim, ambos cozidos. Continuou a passos lentos seu caminho rumo ao Pelourinho. Não gostava de ir a tal local. Sempre que ia ao Pelourinho sentia um peso nas costas. Uma vez procurou uma explicação para isso e o máximo de resposta que obteve foi que era porque ela era baiana. Achou essa resposta “jorgeamadiana” em excesso, deixou para lá e buscou evitar ir ao local. Tarefa difícil para quem mora na cidade do Salvador. Vira e mexe algo te leva lá.

Parou na padaria do Terreiro de Jesus e comprou um refresco de maracujá para si e um pão com manteiga na chapa para uma senhora que esmolava na porta do estabelecimento. Ficou um tempo na porta olhando o chafariz que solidamente se impunha no meio do Terreiro. Pensou: “hoje a água sobe impulsionada por uma bomba hidráulica elétrica”, e antes da eletricidade?

Lembrou que tinha de chegar à Praça Tereza Batista e adiantou o passo. Chegou e o evento já havia começado, no cartaz dizia tratar-se de um evento reunindo a vanguarda musical. Olhou bem a programação e notou que as principais atrações ou tinham o cabelo grisalho ou branco mesmo, pensou: “puxa, faz tempo que ninguém ousa.”

Postou-se em um local que dava boa visibilidade à mesa de som e aguardou. Logo terminou o primeiro show e veio o segundo.

- Nossa! Arrigo Barnabé. Há quanto tempo que não o vejo!

Aguçou a audição e ficou feliz ouvindo o criador de “Clara Crocodilo”. Ficou impressionada com o tecladista que lhe fazia dueto, nunca imaginou que pudesse haver outro louco a ponto de tocar daquela maneira. Viu algumas pessoas amigas e tratou de ficar o mais escondida possível. Nesta busca por ocultar-se acabou por presenciar algo inusitado como o encontro dos guitarristas Luciano Souza com Lanny Gordin.
- Isso é que é surrealismo, Salvador Dali perde feio.

Veio enfim o show de Jards Macalé. Na segunda música, olhou para frente da mesa de som e lá estava um jovem de aproximadamente 30 anos de camisa branca e olhar tenso, ansioso. Ela aproximou-se vagarosamente. Postou-se ao seu lado, abriu a bolsa e retirou um envelope pardo.

- Jaime?
- sim.
- Aqui está o documento. Nele você encontrará a resposta que tanto persegue. Porém, antes que você abra e leia te digo de todo o coração; nem sempre as verdades são necessárias.

Ele olhou-a fixamente, pegou o envelope, voltou a olhá-la, naquele momento só havia, ele, ela e o envelope pardo. Por uma estranha razão, talvez por ter se livrado do documento no envelope pardo, os olhos dela voltaram a brilhar. De súbito o universo deles foi invadido pelo som potente dos que vêem à frente:
-“Não choro, Meu segredo é que sou um rapaz esforçado, fico parado, calado, quieto, não corro, não choro não converso...”*

Ele segurou-a pela mão e desceram juntos as escadarias da Praça Tereza Batista.

No outro dia, ao fazer a limpeza da Praça o rapaz observou que jazia, ainda lacrado, na cesta de lixo, um envelope pardo. Apanhou, abriu e leu-o, ficou gelado, pálido, seus olhos tornaram-se opacos... Pensou: “porque fui fazer isso?!”

Nem sempre as verdades são necessárias.

Roger Ribeiro.
1 de outubro 2009.
*Mal Secreto – Jards Macalé.

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