sexta-feira, 3 de abril de 2009

Homem ao Mar


Meu amigo Flávio está levantando âncora, está partindo por inteiro sobre a sua Nau Capitã. Lembrança ativa e austera. Memória que se mantém atenta percebe no movimento da maré a perene e febril constância das correntes, assim como a eterna força do verde que emerge de sob a branca paisagem das neves.

Meu amigo partir é simples, como no decorrer do jogo o arbitro exigisse o respeito às regras, estabelecesse a ordem, como se os olhares do presente ainda fitassem-na no vetor do progresso. Avante camarada, a luta é árdua mas a vitória é certa. Velhos brados, velhos bardos e suas harpas! Velhos cânticos de campos de sangue e de dor.

Falou-me meu amigo Flávio, no meio da rua, ou melhor, na ponta do final do meio fio, que irá para o meio do mundo aonde seu nome consta nos registros da humanidade. Demasiado instintivo, um esporro nuclear, meu amigo Flávio!

Desistiu meu amigo de ser um estranho? Uma sombra entre as longas sombras da velha Cidade da Bahia? Por certo ao aportar, se tornará referência, epicentro da esquina, nomeará a rua, o viaduto, a ponte, a avenida, sim! Estarás gravado em uma lâmina de esmeralda pela ponta do mais sólido dos diamantes.

Assim será, meu amigo Flávio, junto a sua doce amada Lica; assim foi, assim é e assim será. A eterna corrente da Bahia de Todos os Santos , aonde tantos aportaram, aportam e aportarão. A mala sempre pronta e a bússola sempre a impor a direção na hora, sempre vinda, de partir.

Partem inteiros aos olhos de todas as gentes, os destemidos, iconoclastas, os que percebem a necessidade de rupturas, de sovar as paredes dos Alcatrazes, interior de cada um. Romper as amarras do cais e mergulhar no espelho de Alice.

Olha lá! Lá vai meu amigo Flávio, leva seus lápis, pincéis, papéis e no peito uma vontade louca de não necessitar ir. Mas vai. Vezes se ouvirá: -“Ora Flávio, fica! Já não sabes que é assim?” Já outras vozes se ouvirão a dizer: -“Vai, segue os bons ventos, as boas mares!”.

De mim nada pude nem poderei dizer, apenas olho e confirmo que Flávio se vai, certamente deixará no porto vários olhares curiosos a saber quantos portos, quantas tormentas, quantos mares e calmarias viverás.

Os ventos da Bahia de Todos os Santos soam frescos e frágeis, cadenciosos desde que o samba é samba. Assim são e assim, desde sempre, impulsionaram com leveza e segurança as velas de papiro tinturado da firmeza dos lunáticos, do imaginário dos homens que partem.

Mas a Bahia é terra encantada e, do nada, ao dobrar a esquina de uma íngreme ladeira... lá estavas. Nossa! Que alegria! Bem ao centro, entre o muro e o meio-fio, sorrindo para ninguém nem para nada, lá vinha meu amigo Flávio, ainda sem as malas, mas com um brilho nos olhos que só os que conhecem a força da impermanência, do imponderável possuem a coragem de navegar sobre o titânico mar. Apenas os delirantes, loucos e etéreas crianças sabem a força do som da mão no coro sobre a alma do Leviatã.

Mais uma Nau partirá, não é a primeira, não será a última. Assim se escreveu, se escreve e se escreverá sempre a história da Cidade da Bahia.

Roger Ribeiro
30 de setembro 2008.

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