sexta-feira, 3 de abril de 2009

Leia, mas não conte a ninguém

Acordou no sobressalto achando que estava atrasado, olhou o relógio e certificou-se que, pelo contrário, estava adiantado. Adorou essa constatação, poderia fazer tudo lentamente. Lembrou que, enfim, daria tempo de fazer aquele suco de lima que, na melhor das boas intenções, toda vez que ia ao mercado escolhia minuciosamente as limas mais lizinhas e brilhantes pensando em fazer o suco pela manhã, bem cedinho, para vagarosamente se deliciar vendo o sol amarelo ouro do amanhecer na copa das árvores. Era um cotidiano terrível vê-las: as limas, uma vez por semana no lixo.

Mas hoje era diferente. Ganhou de presente uma hora a mais, faria tudo, lima, sol, pão integral com atum defumado, café, daria até para ler a coluna do jornal que havia ficado sem averiguação no dia anterior por falta de tempo. Tempo, ah! Que delícia é ter tempo.

Achou estranho seu pensamento anterior sobre o tempo, afinal, falou em voz alta para se ouvir, isso deveria ser o normal. O que há de tão especial assim em ter tempo? Afinal, podemos negar tudo, podemos dizer que não existe o sofá, o suco de lima, o café, o beijo, a flor... Podemos até dizer que João Gilberto não existe! Mas dizer que não há o tempo, isso não podemos. Com essa constatação na cabeça levantou de sua estação de pouso (como se referia ao seu colchão) e dirigiu-se ao banheiro.

No caminho não olhou para nada, lugar algum... Sua vista estava fixa nos seus próprios pés. Adquiriu esse costume depois que refletiu que sua melancolia matinal era oriunda do olhar. Sim, passou semanas pensando; - “meu Deus, não tenho tudo, mas quem tem? Porém, tenho muito do que necessito e, acima de tudo, tenho saúde. Tive oportunidade de ilustrar-me, tenho um trabalho, tudo bem que não é o que sempre sonhei, mas... Não posso reclamar de barriga cheia. Então, porque diabos tenho essa maldita tristeza matinal?” Chegou à conclusão que ao acordar e olhar sua taba e só ver paredes e paredes e ao passar as portas só encontrar paredes o entristecia, o fazia se sentir só.

Adquiriu o hábito de sair do colchão e sempre olhar só para os pés. Lá longe, nos pés, dez dedinhos, um bem juntinho do outro a se acariciar a falar bem baixinho um para o outro na língua dos dedinhos: bom dia! E todos respondiam. Como não sabia a língua dos dedinhos se comunicava com eles por telepatia, eram dez amiguinhos que não os deixava mais só.

Tentou ampliar sua rede de amigos matutinos. Caso conseguisse se comunicar com os dedos das mãos, seriam vinte e não, mas dez. Porém, não foi possível. Os dedos das mãos estavam acostumados a seguir suas ordens mentais, passavam o dia escrevendo o que ele pensava, perderam o dom da individualidade, não eram como os independentes dedinhos dos pés.

Chegou, enfim, ao banheiro e olhou-se ao espelho. Fez uma careta para poder se achar mais bonito. Dizia ser uma técnica persa do período de Zoroastro. Olhava-se primeiro no espelho e achava tudo normal, igual. Então fazia uma careta bem horrorosa, medonha, pois assim que sua fisionomia desfazia a careta e voltava ao normal, achava-se lindo. É sempre bom começar o dia se achando lindo.

Lavou o rosto, os dentes e falou consigo: - “Olá! Prepare-se, hoje será um dia especial! Finalmente não terás do que reclamar, ganhastes uma hora, assim de graça! Vais até tomar um suco de lima. E não para por aí: vais saborear o suco e o pão com atum sentado na mesa!” Ao dizer isso, lembrou que tomava seu apressado “café da manhã” (assim mesmo entre aspas), pois não se pode dizer que mascar e engolir um pão com atum e uma caneca de café amargo, em pé frente à pia da cozinha seja um Café da Manhã (assim com letra maiúscula), como seria o de hoje.

Saiu do banheiro e, fitando os pés, não dobrou direto para a cozinha. Ao invés disso, quebrou a rotina e virou para a direita e no centro da sala, em frente ao som, pensou: -“Essa manhã merece uma música”. Retirou do aparelho o disco do Pessoal do Ceará da noite anterior e colocou, baixinho, o de Franz Schubert que sua amiga Jussara o havia ensinado a apreciar.

Assim, quase em transe, foi à cozinha. Fez o suco, o sanduíche, em um prato colocou as frutas que existiam na casa (uma banana, um pedaço de mamão e uma talha de melancia). Nossa! Sentiu-se o rei, sorriu tão largo que temeu pela sua sanidade mental. Engraçado, pensou depois de sorrir: “por que será que sempre que pensamos em loucura, pensamos em alguém rindo, rindo, rindo sem parar... Será que sorrir é pecado?”

Olhou a copa das árvores e achou bela a vista. Era uma luz calma. Sentiu-se confortável, tão confortável que começou a desconfiar que algo estava errado. - “Não é possível, essas sensações só são permitidas na infância. O que poderia estar acontecendo. Será possível, em um dia assim normal,banal, no meio de uma semana comum, um ser poder se sentir e viver momentos tão confortáveis assim?”

Findando o laudo Café da Manhã (assim mesmo com maiúscula), dirigiu-se à cozinha para por os pratos e decidiu que hoje não os lavaria de imediato, ficariam para o retorno à noite.

Sentiu-se tão estranhamente bem que resolveu retornar ao banheiro e olhar-se novamente ao espelho. Ao fitar-se viu no cantinho do espelho o calendário que ali colou com medo de um dia perder-se no tempo e no espaço. Viu o dia da semana e do mês, largou uma sonora e gostosa gargalhada. Entendeu, em fração de segundos, tudo! Era isso! Aquele dia era o dia de nascimento daquela jovem menina, sim! Ela a jovem menina senhora, aquela menina.

O mundo não estava de pernas para o ar.

Roger Ribeiro.
02 de abril 2009.

Um comentário: