sexta-feira, 3 de abril de 2009

O curso das águas.

Para Malinoviski.

Desta vez juro.

- Juras mesmo?

- Não estou te dizendo? Não sou homem de ficar jurando aí por qualquer dez mil rés. Juro por tudo o que há de sagrado. Quer mais?

- Ora, ora... Se não te conhecesse muito bem até mandaria rezar-te uma missa. Desde quando sacralizastes alguma coisa? Não tem jeito, arranja outra que essa não dá.

- Tudo bem, me deixa ver...(é difícil ter amigos de longas datas, nem uma jurazinha besta você pode fazer!), bom então vamos para o plano material, certo?

- Tudo bem, o que você oferece para creditar sua palavra?

- Não! Você não está entendendo! A palavra não é minha, só quero repassar o que ele me contou!

- Mesmo assim, conheço sua verve inventiva, suas alucinações e seqüelas neurológicas.

Lembro-me muito bem do caso do lobisomem que explicava aquelas lapadas fundas que carregavas nas costas e no pescoço. Achas que acreditei? Nem que a sua mãezinha jurasse por você. Apenas achei distraída, criativa, bem argumentada. Era algo para deixar Guy de Maupassant de cabelos em pé e pensando: “como não pensei nisso antes?”. Agora dizer que acreditei? Nunca, nunquinha, em nenhuma palavrinha, nada.

- Tudo bem, vamos fazer o seguinte: se for mentira você fica com o meu vinil do Roberto...

- Qual?

- É... você sabe muito bem! Aquele que você já me tentou roubar algumas vezes...

- Eu?!

- É, sim senhor! Não se faça de cínico... Aquele de 1969 que ele está sentado na areia da praia.

- Caramba! Então a coisa é séria mesmo.

- Posso contar agora?

- Vá lá, olha que se for mentira...

-Escuta só.

Era um fim de tarde abafado, sabe como é, né? Não era quente como de costume, era abafado, aquele abafado úmido que todos percebem logo que vai “invernar”, vai cair um “toró”, e só nos resta buscar um abrigo e torcer para que não venha com a mudança do vento nordeste para o vento sul.

Fatal, se entrar com o vento sul é chuva para três dias. Vento baixo e água a granel, não há guarda-chuva que resolva, a chuva vem da canela para o pescoço. Segundo Dona Maria, minha (posse consuetudinária soteropolitana), baiana que me alimenta há pelo menos 20 anos, é vento prá “constipiu de pinote”, todo cuidado é pouco, vale até arruda e alho no sutiã. Vixi! É barra pesada.

No boteco que escolhi como abrigo antiaéreo, sentei-me estrategicamente em uma mesa de fundo para fugir da névoa de água que bailava no vento. Era um local bem protegido, pelo menos da água. Antes de continuar te adianto: meu amigo, toda proteção é mera ilusão.

Assim, sentado lá no cantinho, sentindo-me invisível, fiquei confortável ao ponto de pedir algo para beber enquanto esperava uma estiagem para prosseguir meu caminho. Havia passado, no máximo, dez minutos quando se formou um burburinho na porta, todos falavam ao mesmo tempo, a discussão se acalorava rapidamente e quanto mais o clamor das vozes se exaltava mais o balconista alteava o seu hi-fi (rádio para os mais jovens), que berrava uma doce canção do Marcio Greyck:

“Eu me perguntei se esse mundo é o meu/
Não encontro paz e já me cansei.../
Eu só quero amar, não ferir ninguém/
Eu só quero amar, nada mais além...”

De repente ele surgiu lá do burburinho e veio de dedo em riste apontando em minha direção. Nesse momento, lembrei-me do Luiz que sempre me disse que tenho sangue doce prá maluco. Pois, de dedo ainda em riste, decretou: - “Então ele será o juiz da questão”, resistir em levantar a cabeça e constatar que aquele incisivo “ele”, tratava-se na realidade de minha pessoa. Levantei o olhar como quem quer ampliar a miopia, mas não teve jeito. A tribuna estava montada, todos aceitaram de pronto, o veredicto seria meu.

“Preciso crer que se pode achar /
Um lugar de paz nesse mundo mau/
Eu só quero amar, não ferir ninguém/
Eu só quero amor, nada mais além...”

Me deu vontade de entrar no hi-fi e esmurrar o Marcio Greyck. A chuva reduziu, ficou uma garoazinha. Dava perfeitamente para eu seguir meu caminho, mas havia uma pequena multidão (relação população/espaço), entre eu e a porta, que me impedia até de pensar em levantar. O postulante, à verdade postou-se entre a turba de incrédulos e eu, colocou uma garrafa de aguardente em minha mesa com dois copos, acho que seria um para ele e outro para mim, o que foi de imediato protestado por todos:

- Você está querendo comprar o juiz!

Berravam alucinadamente, era uma contenda séria, não admitia essas nuances duvidosas. Um dos copos foi retirado, percebi rapidamente que havia sido o meu, pois o nosso gladiador urbano apanhou o copo sobrevivente e preencheu-o, por pouco tempo, diga-se de passagem. O balconista desligou o hi-fi, a mão do bardo tocou em meu ombro e disse: - “preste atenção e julgue”. Senti um frio na barriga, julgar? Eu?

Antes de qualquer possibilidade de contestação minha ele começou:

- “Senhores, vago pelas ruas e incomodo a todos por ser na verdade o alterego que ninguém quer ser. Coloco nas minhas telas as cores que ninguém quer ver. Falo de amor e por isso sou ultrajado, rejeitado, até mesmo evitado e insultado. Essa cidade carcomida de sangue, luxúria e exploração me julga um pária, mas não ousa olhar para si, para suas entranhas”.

Após breve pausa para reencher o copo e esvaziá-lo com segura determinação, prosseguiu: -“Sr. Juiz (falou fitando-me nos olhos), estes homens sem fé não acreditam que sou Jesus! Querem me crucificar... Olhe para mim, olhe para eles e julgue. Não lave as suas mãos”.

O silêncio era total, todos olhavam para mim esperando o veredicto, eu olhava para todos esperando uma intervenção divina. O silêncio era tenso, pesado. Ali se definiria o futuro da humanidade.

O balconista re-ligou o hi-fi e o som encheu o pequeno e lotado salão onde até a pouco pregava o profeta.

Eu sou terrível e é bom parar
Que desse jeito me provocar
Você não sabe de onde eu venho
O que eu sou , nem o que tenho

Eu sou terrível vou lhe dizer
E ponho mesmo pra derreter
Estou com a razão no que digo
Não tenho medo nem do perigo
Minha caranga é máquina quente

Eu sou terrível e é bom parar
Porque agora vou decolar
Não é preciso nem avião
Eu vôo mesmo aqui do chão

Eu sou terrível vou lhe contar
Não vai ser mole me acompanhar
Garota que andar do meu lado
Vai ver que eu ando mesmo apressado
Minha caranga é máquina quente

Eu sou terrível , eu sou terrível ...
(Eu Sou Terrível – Erasmo e Roberto)

Roger Ribeiro.
13 de março 2009.

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