sexta-feira, 3 de abril de 2009

Quem?!


Parou, olhou para mim e disparou: - você não está me reconhecendo? Não é mesmo?

Estávamos eu, ele e mais um monte de pessoas, sem rosto, que passavam para lá e para cá, todas enfiadas em mundos diversos, pensando em resolver suas vidas, pensando nas dívidas, pensando em comprar aquelas flores para iniciar a difícil sedução. Parados só ele e eu, que na realidade estava até poucos instantes em movimento e também absorto em pensamentos inconfessáveis, até que, primeiro com o olhar e depois com suas palavras me fez parar.

Duas silhuetas humanas num fim de tarde, parados em uma calçada onde todos estavam em movimento. Eu tinha de parar. Claro, afinal ele havia se dirigido diretamente a mim, não podia eu ser deselegante, a ponto de fingir não ter percebido que ele se dirigia a mim. Naquela multidão de passantes, pensantes, sem rosto, ele distinguiu-me. Eu não era um espectro para ele, não! Eu era real, possuía, inclusive, fisionomia própria.

Ele repetiu, agora de maneira mais incisiva: - você não está me reconhecendo? Não é mesmo?!

Percebi que tinha de apurar minha visão míope, pensei em tirar os óculos, limpá-los para poder vê-lo melhor. Se ele se dirigia de forma tão direta e segura para mim é porque me reconhecia, e pior, sabia que eu não o reconhecia e deixava isso claro e explícito desde o primeiro momento. Balancei um pouco a cabeça, como se estivesse buscando em outro ângulo uma legenda qualquer que me elucidasse de quem se tratava aquela pessoa e... Nada.

- Não adianta! Disparou, - você não vai me reconhecer. Foi taxativo.

Ora, como ele poderia ser tão presunçoso a ponto de saber o que eu posso e o que não posso reconhecer? Comecei a achá-lo demasiadamente autoritário. Que história é essa? Daqui a pouco ele vai querer dizer que eu não sei quem sou e só ele pode me recompor a minha condição de indivíduo. Dei um passo em sua direção fingindo certa intimidade, assim como quem vai dar um tapinha no ombro do outro e dizer: claro que sei! Como vão as coisas? O que anda fazendo?

Mas não fiz nada disso, pois quando dei o passo à frente ele imediatamente deu um passo à trás, era um equilíbrio meio desequilibrado, tomávamos um bom espaço da calçada e as pessoas tinham de fazer um certo jogo de corpo para poder passar.

Ele continuava impávido em relação ao que transcorria no exterior daquela relação tensa entre ele, o inquisidor, e eu: o réu. Mas como posso eu ser réu de um desconhecido? Que condição mais incômoda! Senti-me mal por um momento, pensei em pensar: trata-se de mais um maluco urbano! Dar por encerado o assunto e continuar o meu caminho. Mas isso não seria justo! Seria apenas uma demonstração do meu despreparo humano: rotulá-lo de maluco e sair deixando o ônus do insucesso nos ombros dele. Seria covardia demais.

Ele, creio que percebendo minha situação, veio em meu auxílio: - não se preocupe, você não me reconhece por que eu não quero que me reconheça. Estou disfarçado.

Ah! Disse, logo vi. Afinal sempre fui péssimo em gravar nomes, mas fisionomias sempre gravei muito bem. Me recordo até do semblante de bruxa de conto de fadas de uma senhora amiga de minha mãe que ficava tomando conta de mim e dos meus irmãos quando meus pais saiam à noite. Lembro do seu semblante sádico trazendo uma jarra de chá de limão morno com cravo que dizia ela nos ajudaria a crescer fortes. Arch! Até hoje não posso sentir cheiro de limão morno que fico paralisado de terror. E olha que eu tinha quatro anos, e mesmo assim lembro-me do rosto dela. Como não iria me lembrar daquele meu interlocutor que devia ter minha idade?

Tudo estava elucidado, estava eu plenamente satisfeito, ou seja; eu não o reconhecia porque ele estava disfarçado, exatamente para não ser reconhecido. Ponto final.

Pensei em parabenizá-lo pelo excelente disfarce, pois efetivamente eu não o reconhecia de forma alguma, mas no lugar de simplificar as coisas, parabenizá-lo e ir embora eu fiz a pergunta que não deveria, agora eu sei, ter feito: e porque você está disfarçado?

Ele deu um sorriso de desprezo, acho que ele até então me julgava mais inteligente e sagaz, e com os dentes cerrados como quem está comunicando o óbvio disparou: - todo super herói tem de andar disfarçado até entrar em ação.

Claro! Mas que estupidez a minha, era realmente lógico. Acho que não percebi antes por causa dos problemas que tem tumultuado o meu sono, só pode ser isso. Dei-lhe a mão um pouco temeroso da sua super força e dos seus super poderes, será que ele podia pegar em minha mão?

Ele deu-me a mão, com a outra encostou o dedo que aponta, nos lábios no sinal claro de quem pede sigilo e pusemo-nos a andar, ele para um lado e eu para o outro.

Sorri e percebi que estava feliz como a muito não estava, afinal, havia conhecido um super herói em seu disfarce, isso, creio, deve acontecer a poucos privilegiados afinal todos conhecemos os super heróis em ação, sabemos que eles têm “uma capa de estrela e um cinto de cometas”. Mas assim disfarçado?
E ele realmente parecia uma pessoa comum. As aparências escondem cada coisa...

Roger Ribeiro.
13/02/09.

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