segunda-feira, 20 de abril de 2009

Um corpo de ar. ( Para Mab e Lulu )




Peeeeemmmmmmmmmmmmm... Peeeeeeeeeeeeeeeeeeeeemmmmmmm, Peeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeemmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm.


Ela passou por mim e falou: - todas em seus postos! Sim, era o terceiro sinal, eu estava a uns cinco passos do meu posto. Éramos ao todo seis, eu e mais duas de um lado e as outras três do outro lado, naquele momento, do infinito palco à frente.


Ontem, antes de ontem, tudo isso era visível, real, claro e tranqüilo, porém naquele momento algo havia se transformado. Até aquele terceiro toque da sirene o som que vinha da platéia era alto, ininteligível. Sim! Era uma massa sonora de vozes sem maestro, sem afinação, dissonância pura, passou por minha cabeça a música do maestro Hans-Joachim Koellreutter, que me foi apresentado pelo meu professor de espaço e equilíbrio.


Após o terceiro toque, a massa sonora começou a diminuir, como se alguém estivesse a manipulá-lo nos botões luminosos da mesa de som. O silêncio foi se estabelecendo de tal forma que inundava os meus ouvidos. Sabia que aquela pesada pausa sonora estava a instigar o sentido do olhar dos que lá estavam para ver. Senti um frio correr o meu corpo e como se alguém tivesse aberto o ralo, meu corpo todo gelou e sugou todo o fruto do pré-aquecimento.


Percebi que deveria redistribuir meus sentidos, não podia mais ficar toda dentro da audição, afinal entre o terceiro toque e o movimento de desequilíbrio seriam apenas trinta segundos. Inspirei com força o ar, enchi o pulmão e prendi-o em mim contando lentamente até dez, afinal quando você se enche de ar, você fica mais leve. Assim é com uma embarcação à vela, assim é com o nadador que precisa ficar à flor d’água para atravessar a baia de Todos os Santos. O ar nos limites humanos, quantos quilos a menos?


1, 2, 3... Não compreendia?! Sempre funcionou! Porém desta vez pareceu-me estar, o ar, solidificando-se nos meus pulmões. Eram duas âncoras. Estava a cinco pequenos passos do meu lócus inicial e não havia a menor possibilidade de movimento, deus! Estou começando a me assustar. De longe, muito longe escutei novamente a soprana voz: - todas em seus lugares. O som da voz era tão distante...


4, 5, 6... Dei-me conta de que olhava para frente e, lá do outro lado, a forte luz do refletor azul desfigurava uma silhueta humana à sua frente, ferindo com profundidade meus olhos. Comecei a suar, um filamento de água salgada escorreu de minha testa e percorreu a cavidade do meu olho esquerdo com uma destreza ímpar para não penetrar no globo ocular. Creditei esse caminho d’água a um apoio místico, afinal, tudo que não poderia acontecer nesse momento seria uma irritação nos olhos que já estavam duramente castigados pela luz azul do refletor.


7, 8... Era um aviso, daria tudo certo, daquele momento em diante tinha essa certeza. Pensei em fazer uma oração, lembrei de um trecho do Salve Rainha (Eia, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei! E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto em vosso ventre...), uma oração tão bela que nunca consegui decorar. Graças a isso nunca a rezei na íntegra o que acabou permitindo que a mim ela fosse sempre motivo de audição e admiração.


9....10, expirei com uma força fora do comum como quem quer realmente expurgar algo. Precisava livrar-me das âncoras no meu peito. A meu lado, de vestido branco e voz tensa, veio mais um sinal: - venha, está na hora! Mantive meu pulmão vazio como uma uva passa e reiniciei a contagem, 1..., novamente o suar secou em minha fronte e consegui dar um pequeno passo à frente e movimentar em forma de onda à frente do meu peito meu conjunto de braço, antebraço e mão direita, prestei atenção a esse movimento. Estaria eu leve? Harmônica?


2, 3, 4... Ouvi os últimos ranger das poltronas antes do silêncio tornar-se absoluto, a concentração era de todos, a expectativa tensa era total. Estava no ar entre o salto da plataforma e o mar, estava no contratempo entre a fuga de Miles Davis e a marcação de Charles Mingus, estava solta, completamente solta, no ar entre o largar de uma barra do trapézio e o segurar da oposta.


5, 6, 7... A máquina de fumaça fez um silvo e enamorado das luzes dos refletores eliminou qualquer possibilidade de espaço real. À minha frente um espaço indescritível, indivisível, contínuo. Nem bem a Terra nem bem o cosmos, algo assim como a Terra do Nunca, algo infinito, percebi que eu já não era matéria, meus olhos encharcaram e meu peito ocupou o espaço entre o pescoço e o meu sexo. Meus olhos secaram e fixaram-se no nada. Via tudo, não conseguia distinguir nada.


8, 9 e 10, inspirei. Desta vez, sem pressa e sem força, apenas permiti-me penetrar pelo ar. Desta feita ele era fresco, trazia consigo o cheiro forte da fumaça. Dei mais dois passos à frente e fiquei novamente maravilhada com aquele momento, aquele silêncio, aquele campo etéreo criado pela moldura negra do palco preenchida de luz colorida. Ouvi a respiração das outras meninas, era tudo o que ouvia.


Cheguei enfim ao meu espaço, estava em minha base. Tudo estava pronto como me pareceu que sempre esteve, dobrei levemente os joelhos para ter a certeza de que estava no peso, no tempo e no espaço justo, na tensão exata. Havia algo que não era eu! O eu havia se deslocado de mim. Eu, o eu mesmo, estava sentada na vara de iluminação sorrindo para mim.

Com uma dinâmica crescente de baixo, piano, violas, bateria e guitarras a música preencheu tudo...


- Venham! Todas juntas, ouvi nitidamente aquela mesma voz do início. - Vamos! Todas abraçadas, aí não! Na frente do palco, sim! Agora! Agradeçam.


Abaixei meu tronco sobre as pernas e agradeci as palmas, olhei para a trave de luz e sorri muito, eu já não estava lá.


Roger Ribeiro.

17 de abril de 2009.

5 comentários:

  1. Eu, a mãe babona ... agradeço a homenagem a filhota.
    beijos meu branco do coração

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  2. Lindo. Vc com certeza capturou as sensações de uma bailarina (ou qualquer ser que tenha a grande responsabilidade de se expor em público)nos segundos que antecedem a sua apresentação.

    Sandra

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  3. Como sempre, ADOREI. Além de ótimo escritor você daria um ótimo conhecedor da alma (sentimentos) humana!! rsrsrs. beijosss

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  4. Parabéns ao Roger por escrever tão sublimemente sobre dançar e sobre essas 2 tão especiais dançarinas que conheço ! E sobre a dança que é o meu alimento tbm !!!
    Bjssss Ana Maria Gaúcha

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  5. Cássia, Sandra, Romana e Ana Maria.

    Dançar é como Lemisnk / Mautner, vocês tem lido e ouvido?

    valeu a gentileza!

    rogerinhobomdebola

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